segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Memórias dos sonhos,da luta e do pó de giz 3



 Juiz de Fora, 2 de dezembro de 2011.
Querida Tia Terezinha:
        E aí?  Sobreviveu aquele café frio naquela fria e chuvosa tarde de novembro, véspera de feriadão pra uns e, feriadinho para outros?    Então... Finalmente a gente se encontrou naquele supermercado, depois de tantos anos!
      Eu tava lá  no caixa das prioridades que demora mais que os outros, passando compras e também trocando dicas e receitas com uma senhorinha do cabelo ilusão-lilás. E aí...vc.!... Vc. me interrompeu:
      Não perde a mania de ensinar, hein...Tiaah! 
    Eu te reconheci logo e respondi:
        ... E de aprender  também! 
    Aí só deu a gente nos caixas  e nas portas dos armazéns da  vida ... A gente conversou e foi tão legal...  Lembra? A gente relembrou daqueles novembros e daqueles dezembros passados e a gente riu muito, quando nos demos conta que estávamos em pleno mais um novembro... Então... Lá se foi mais um novembro... Ela ficou... Ela? Aquela chuvinha da perna comprida e preguiçosa...  Se ela chover de madrugada, tudo bem... A gente tá dormindo mesmo... Mas... E quando ela chove no começo ou no fim de expediente... E se ela vier em dezembro, véspera de tudo: natal, prova final, fim de semestre aprovação e reprovação... Uau! ...E pra quem trabalha no turno noturno? 
     Eheheh... Chuva...  Eh... Amiga e colega... Lá vem mais chuva fininha e enjoada de dezembro e lá vem lembrança de uma certa noite de chuva e de fim de semestre. 
    Eheheh... Chuva... Hoje vc. não me incomoda tanto assim... Mas houve um tempo... Eheheh... Um tempo de chuva fina no fim de tarde e... Durante a noite toda... Era um tempo daqueles... Lembra? Eu havia deixado de trabalhar no Mobral* e tinha passado no vestibular da UFJF**.  Lembra? Era um tempo que precisava eu estudar de dia e dar aula à noite e ter um salário mais ou menos fixo. E mais, um tempo de escolher entre o que gostava e não gostava mas era necessário... Então eu fui lecionar num cursinho particular preparatório para o chamado Madureza, nomeado por um certo artigo de lei do ensino*** que eu não me lembro qual agora... 
    Mas lembro da sala cheia de alunos que me olhavam como que indagando: Será que essa professora moreninha, baixinha vai resolver nosso problema? Serah??? Será que ela é mesmo professora de Comunicação e Redação? Será que vai lecionar todo o programa, a tempo dos exames? Eu sabia que o tempo era pouco e o conteúdo era bem maior, mas eu já praticava aquela técnica de vez em quando ou de vez em sempre... ??? ...Aquela técnica de deixar pra lá o conteúdo e ceder ao que estava posto: sentimentos controversos, angústias discentes que não há gramática que resolva. Só uma boa conversa em rodinha e uma composição daquelas (que hoje chamam de redação, produção de texto, uso dos gêneros literários e etc.). 
      Pois é...  A gente tava lendo e interpretando o texto-base. E no meio do assunto, a gente acabou falando de Natal, de décimo - terceiro... Da chuva fina e enjoada...  Da lama nos sapatos – a maioria de nós morava em ruas sem calçamento. Do bicão do bairro que tava com a água barrenta, e na época, o bicão e os poços domésticos eram a única fonte de água potável em várias regiões da cidade. De repente, alguém na sala ficou com raiva e teve a coragem de revelar sua raiva e fez dela a ira dos anjos, ou como chamamos agora de indignação...   Eheheh... Minha amiga... Havia muitos indignados naquele tempo... Muitos sujeitos simples mas não ocultos! Anjos ou não!... A maioria costumava afogar sua indignação em um trago da branquinha, mas havia os que a levavam às últimas conseqüências... Tanto que a nossa terra tão gentil está marcada do sangue deles...
     Pois é... o Oswaldo (com W mesmo), um desses indignados dos anos 70, não chegou a tanto, mas botou a boca no trombone, ou como diria Antonio Francino, abriu o bico:
       Esse negócio de Natal é uma besteira... Jesus nem nasceu nesse dia e tem mais o povo bebe, come e gasta dinheiro que nem tem... Enquanto isso fica jorrando água barrenta no bicão e o governo nem se preocupa... Pois não tá tudo com o bucho cheio de décimo - terceiro?... 
   Aí foi um silêncio profundo na turma que foi quebrado pela voz fraquinha de Dona Neuzinha, uma senhora franzininha que muita gente não entendia porque ela tava querendo estudar naquela idade... Não importava... Eu e ela sabíamos que ela queria dar orgulho pro neto que estava estudando medicina na UFJF**... Pois é... Dona Neuzinha, da voz fraquinha, veio em meu auxílio:
     É... Nós tem muito que agradecer... Casa, comida, trabalho e saúde... Lugar quentinho pra passar a noite de Natal... Pior é pras crianças que ficam na rua que nem aquela menina da história que eu li pro meu netinho caçula... 
   Eh... Minha querida amiga Terezinha, naquele tempo, já havia crianças nas ruas: trabalhando, pedindo esmola e sem um lugar quentinho pra dormir, principalmente num Natal chuvoso ou com nevasca, que nem na história daquela menina... Ela?... A Pequena Vendedora de Fósforos, umas das mais belas e tristes histórias de Natal – não sei se é de Andersen ou dos Irmãos Grimm ou...? Ela só não morreu de frio naquela noite também  porque virou tema de uma composição, aonde nós íamos trabalhar o que era parágrafo e também justiça social, trabalho e renda... Tá estranhando?  Mas era assim que estava na apostila que vinha do governo estadual!  Mas isto também é uma outra história... Te conto amanhã porque agora a chuva fina batendo no telhado, a música suave no MP3 mais os remedinhos estão me dando um soninho... Graças a Deus, hoje eu tenho um cantinho mais que quentinho pra dormir... Tchau... 
                                                                           De sua colega e amiga
Tia Bebel.


                                Juiz de Fora, 3 de dezembro de 2011-12-03
Querida Tia Terezinha:
      E aí... Nada como uma boa noite de chuva fininha e de sono bem dormida... O sol está piscando entre nuvens... Não sei pra quem pisca porque o povo anda azafamado gastando a metade do décimo - terceiro que alguns patrões (não o nosso), em respeito à lei, já pagaram!  Bem... Os que tinham algo a receber, pois tem uns que já devendo o abono do ano da Copa... Bem... Nada que uma professora brasileira desconheça... E tudo que reconhecemos e relembramos naquele papo de caixa de supermercado... Ah... A apostila até que era boa... Que apostila? 
    Aquela, do curso preparatório, a que me referi, ontem, que tinha que trabalhar parágrafos com justiça social e renda. A gente ia fazer uma composição partindo da história A pequena... Ahhá!! Já sei que vc. está pirando o cabeção... Que tem a coitada da pequena vendedora de fósforos com isto tudo?... Não lembra?... Ela foi citada por Dona Neuzinha como criança de rua abandonada e morta de frio... Dona Neuzinha, que Deus a tenha... Se os redatores do ECADE*¹ a tivessem conhecido, iriam com certeza aproveitar muito de suas falas nos artigos mais importantes do estatuto... A composição dela foi um arrazoado discurso indignado com o abandono de crianças, mal que já assolava essa terra tão gentil... E os parágrafos? Tô ouvindo vc. perguntar! Acho que eles aprenderam muito sobre eles, mas muito mais sobre o que veio depois. Dona Neuzinha quis ler o seu texto em voz alta e ela começou assim:
       Pra ser Natal de verdade! O Natal está chegando... Mas pra quem?... 
      A turma já começou a se remexer e a cochichar só de ouvir as primeiras frases. Nuvens de um debate acalorado desaguaram sobre todos, salpicando as festividades e as desigualdades da festa cristã de indignação. Eh... eh... Querida amiga! Acho foi bem naquela época que se iniciou a minha incompatibilidade com os tempos previstos pelas apostilas oficiais, no desenvolvimento de certos itens... O tempo previsto para trabalhar parágrafos e justiça social e trabalhista era de 2 aulas de 50 minutos, e já estava quase no fim da 3ª e ainda não havíamos concluído nem a leitura do texto-base, que tinha sido preterido por uma composição que recebeu um pedacinho de cada aluno. 
     Hoje quando analiso livros didáticos e proposta curriculares, sinto que eu e algumas colegas de profissão nos antecipamos e praticamos alguns dos parâmetros contemporâneos, por intuição, eu acho... Nós já achávamos que o Professor Freire*² tinha mesmo razão... É mais fácil ensinar quando se deixa o aluno apresentar sua leitura de mundo. É... Tem uma colega que não gosta das idéias dele até hoje, e ela fala muito brava: 
      Quero ver ele aqui agora dando aula pra esses moleques de agora... A leitura mundo deles é uma...piiiin!
     Bão... Retomando o outro rumo da prosa, finalmente eu consegui terminar o tópico dos parágrafos, utilizando da própria conclusão do debate que redigimos coletivamente: que na verdade ninguém sabia o dia do Nascimento de Jesus; mas que era bom comemorar simbolicamente e que estava na hora da gente resgatar o sentido solidário e coletivo da festa... Pena que naquela época, a gente quase não registrava os melhores momentos... E os poucos registros se perderam no tempo. Ia valer à pena reler tudo aquilo de novo... 
    Mas, toda vez que chega este dezembro frio e chuvoso, e eu vejo um reflexo – um pequeno arco-íris nas gotinhas de chuva, que tornam mágicas aquelas luzinhas de Natal que enfeitam nossas ruas, eu me lembro de Dona Neuzinha e penso que ela, há 37 anos, pensou na nossa cidade assim: toda iluminada e uma porção de árvores de um Natal como pensou Betinho*³, que se quer mais solidário... Ao menos, já temos muita gente que socorre os pequenos vendedores de tudo e suas famílias, antes que morram de frio e fome... É por isso que aproveito pra te desejar 
    ─ Bom Natal e Feliz Ano Novo!... 
     Bem assim tradicional... Na semana, que vem eu vou mandar a minha contribuição para a festa que vc. fazer pra os seus afilhados, ok?... Ah... Aquela minha colega anti-freireana?  Isto é uma outra história que depois te conto... Agora, embora não chova nem fino nem grosso, os remedinhos me embalaram mais cedo. Tchau!!!  
De sua amiga e colega
Tia Bebel. 

*MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização, projeto que pretendia erradicar o analfabetismo, durante os governos militares.
** Universidade Federal de Juiz de Fora.
*** - Art.99 – artigo da Lei de Ensino, que regulamentava o antigo Supletivo do 1º Grau, nos anos 70.
...? Hans Christian Andersen, Irmãos Grimm e Charles Perrault, escritores da Literatura Infantil universal
*¹ - Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n.8.069,13/07/2011.
*² - Paulo Reglus  Neves Freire- professor e pensador da Educação brasileira (1921-1997)
*³ - Natal do Betinho – Natal Sem Fome, campanha lançada, em 1994, pelo sociólogo brasileiro Herbert José de Souza (1935-1997)

Izabel Cristina Dutra - escrito e reescrito de 2b a 7/12/2011.                                   

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