segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Memórias dos sonhos,da luta e do pó de giz 1


Juiz de Fora, 11 de outubro de 2011.
Querida Mari Cesar:
     Como vai vc.? Espero que esta venha lhe encontrar com plena saúde e muito amor, juntamente com seu marido e sua filha.Eu também vou bem  animada com  que vem a seguir: a publicação do meu livro e outros sonhos se realizando. Pois é...Outubro  chegou e no primeiro domingo, o G-5 ( a turma da minha filha) se reuniu aqui em casa para matar saudades das amigas e relembrar os velhos tempos recentes do CTU*¹. 
   A presença delas encheu a casa das conversas juvenis ora alegres ora saudosas do tempo do ensino técnico. Elas agora estão na faculdade, umas fazendo estágio e outras trabalhando. Quando elas fazem alguma queixa, eu brinco:   Bem-vindas ao portal do mundo dos adultos. 
     Reunião de  moças sempre traz lembranças do tempo, em que a gente tinha chegado lá! Estas lembranças criaram asas e ficaram pairando no ar primaveril... Mas hoje, quando começou a chover, elas voltaram, feito o sabíá que fez ninho na garagem da minha vizinha... Ele fica cantando lá fora... Se chover, ele corre e fica cantando e trinando, à tarde todinha, na beiradinha do telhado!  Pois é... Hoje quando começou a chover, minhas lembranças voltaram e vieram trinar na minha cabeça...  
     Eu me lembrei das nossas conversas na biblioteca da escola, nossos sonhos, nossas lutas e o danado do pó de giz que fazia espirrar e tossir... Aí me lembrei de quando também do meu começo de carreira, trabalhando com jovens e adultos. Aí eu  comecei a escrever estas memórias... Sei lá se para me desvencilhar delas ou,  para prendê-las para sempre...  
     Era um outro outubro, uma outra primavera  que começou meio seca que nem esta! Aqui, no Vale do Paraibuna, esta cidade já era pólo, mas não de tantas coisas... As estações ainda eram bem marcadas... A gente até sabia que roupa ficava no cabide e a que ficava nos guardados... Chuva vinha quase sempre a conta certa! Por isso a gente estava estranhando aquela seca... Talvez, naqueles anos, El ñino e La ñina não tinham tantas  chances de aprontar tanto... 
     Esta cidade também já era de oportunidades porém de muitas desigualdades.  Aqui no interior, jovens já tinham seu jeito de ser, além do que se queria deles e, mulheres estavam começando a saber que podiam mais, muito mais... Eu tinha acabado de tirar o uniforme de normalista... Aquele bonitinho de camisa branca de mangas dobradas, meias ¾ virando soquetes, e saias pregueadas variando de comprimento, de acordo com a distância da casa ou da escola!...  Eu estava me preparando para o vestibular. Naqueles tempos, esta era  uma façanha quase incrível de uma mocinha, que morava numa casa de chão batido, numa rua sem calçamento, na Serra de  Cima*².  Além do mais, superando as primeiras ilusões e desilusões do amor e da vida!...  Eu e algumas moças tínhamos chegado ao tal portal mais cedo que o restante da turma, porque tínhamos que trabalhar e nos virar, muitas vezes sozinhas... 
     E foi assim que, depois de algumas substituições em escolas públicas e particulares, eu  fui enfrentar a minha primeira sala de aula, no extinto Mobral*, numa turma que funcionava numa casinha simples  com um bico de luz, a Escola Municipal Álvaro Braga. Era um tempo de mudanças e ainda amargávamos os efeitos da ditadura... Foi a minha experiência primeira profissional. Eu estava aprendendo a secar os olhos, “engolir o choro e continuar trabalhando"... 
     Era uma primavera seca... Mas, numa certa noite, no começo de outubro,veio a chuva e veio ele todo molhado... Ele?... Ele era  um moço negro , forte e seu rosto e seus olhos  me lembravam do meu avô, Isaías... Foi numa das noites em  que tive de praticar o “engole o choro e continua trabalhando!...” Olha já está muito tarde e o remedinho já esta fazendo efeito... Tenho amanhã te conto mais... Boa noite!
De sua colega e amiga  na real e no virtual, 
                                                                        Tia Bebel


Juiz de Fora, 12 de outubro de 2011.
Oi, Mari Cesar: 
     Hoje é feriado.Mas estou sozinha em casa. Isis viajou para a cidade onde o namorado dela está trabalhando. Juca foi fazer meio-expediente mas ainda não. Então... 
Eu estava lhe falando da minha experiência no Mobral. Lembra? E  Aquele rapaz foi chegando todo molhado! E a turma teve uma reação estranha, pois eram alunos mais calmos que os outros de outras turmas. Eles fizeram menção de vaiar e o Toin, quer dizer o Antônio, um dos mais alterados, gritou:
      Oh! Oh!... Cata-cavaco... Num vem aprontar aqui não! Nós tudo tá aqui pra aprender a ler... 
     Antes que a turma se alvoroçasse mais, eu me levantei, pedi silêncio à turma e perguntei se ele desejava estudar?E ele me respondeu:
      Ainda dá tempo? 
     Eu respondi que sempre é tempo quando se queria... E pedi para ele se enxugar um pouco e dei a única coisa que podia servir de toalha: um pano de saco alvejado! Enquanto ele se enxugava no banheiro, eu conversei com os alunos e pedi a eles que nós pudéssemos receber com mais gentileza as outras pessoas. Todos se calaram porém o mais exaltado ainda acrescentou: 
    Ah... A senhora não conhece ele não, né?... Ele é neto daquele macumbeiro... 
     Eu fiz um gesto de silêncio pois o rapaz estava querendo ir embora. Entretanto, Jorge ainda quis dar a palavra final: Se a senhora quiser a ficha , os meganhas*³ do Distrito Policial de São Mateus é que sabem da vida dele!...      Eu fiz um gesto impaciente e pedi fizessem a atividade já explicada e me preparei para atendê-lo. Assim sentado, ele não parecia tão alto e forte... As mãos dele tremiam e ele fazia um rito estranho com a boca... 
      Qual é o seu nome? – perguntei. Cata-cavaco Não... Eu quero o seu nome verdadeiro, que está na certidão... 
     O rosto dele tremia todo, as mãos crivaram nas bordas da mesa e os seus olhos ficaram miúdos, enquanto ele se explicava:
      Lá em casa, todo o mundo me chama assim... Na rua, ainda me chamam de Zé Cata-cavaco... 
     Alguém riu e eu pensei que ele ia partir pra cima... Mas ele olhou pra mim e com voz quase de menino, me explicou:
    Num tenho registro não! A senhora não pode fazer a minha matrícula só como José? 
    Os segundos seguintes me pareceram séculos. Todo o meu ser afluiu ao meu coração e os meus olhos marejaram... Mas era uma daquelas noites em que iria praticar o “engole o choro e continua trabalhando”. Então eu coloquei a mão de leve nos seus braços cruzados em desafio e disse: 
      Olha vamos fazer assim. Eu vou matriculá-lo só como José... Mas depois, nós precisar o seu nome verdadeiro completo, tá bom assim. 
     Ele era  menos que um pirralho quando afirmou que sim, com a cabeça... Eu dei o caderno de atividades que era grátis para todos os alunos e o fiz sentar bem longe do delegado da sala... 
    Ao terminar a aula, ele saiu correndo na frente dos outros. Então Dona Geralda, a minha aluna mais velha, que tinha quase setenta anos, e lindos cabelos brancos.Ela chegou perto de mim e me abraçou carinhosamente. Ela parecia que tinha entendido toda a minha aflição e emoção diante  da reação da turma e da figura de Cata-cavaco, ou melhor de José. Ela me falou bem baixinho: 
    Olha, dona professora, a senhora não fica chateada não. Esse povo é ingnorante! Esse moço e a família são meio destrambelhados... Mas a vó deles mora lá no Buraco do Olavo**, perto da minha irmã. O dia que for lá eu pergunto pra ela... Ela deve ter o registro  dele... 
    Naquele dia, eu fui pra minha casa com a sensação de que caía mais um pedacinho do mundo na minha cabeça... E em meio ao desassossego, ainda enfrentei um momento crítico da minha família, que era também meio destrambelhada que nem a de José... Com a diferença que todos sabiam ler, escrever e onde estava a sua certidão, menos meu padrasto... Naquela noite também eu vislumbrei o portal – o tal que a gente atravessa para o mundo dos adultos... Lembrando de portal, eu já estou atravessando o do sono... Boa noite!
De sua colega e amiga  na real e no virtual, 
                                                                        Tia Bebel

           Juiz de Fora, 13de outubro de 2011. 
Oi, Mari Cesar: 
     Pois é...  Hoje eu custei ter tempo para te escrever... É que tive uma consulta médica, de manhã. À tarde compareci à perícia... Vou ficar de licença-saúde, até fim de janeiro. Então? Preparada para o resto da história?
Nas noites que seguiram, ele vinha sempre atrasado mas vinha... Ele?...O rapaz que não sabia o nome completo... Zé Cata-cavaco, ou melhor, José. Ele chegava com os pés empoeirados, com jeito de não ter tomado banho... A rua e casa dele eram iguais  às minhas: de chão de terra batida e um banheiro só, para várias famílias...  Ele se assentava na  última carteira, no fundo da sala. Só vinha na frente quando o trabalho era em dupla. Dona Geralda, com seus lindos cabelos brancos, sempre dava um jeitinho e o escolhia para seu par. E assim a boa senhora foi costurando comigo a adaptação dele. Não era fácil pois se a turma o rejeitava em silêncio, Toin – o  implacável – sempre  levantava a ficha criminal do rapaz e fazia comentários maldosos sobre a família dele:
      Aí... veio esconder dos meganhas? O Chiquinho Mariosa tá caçando quem foi que roubou as tintas dele! Sua mãe tava bem vendendo tinta, lá na feira... Sua irmã tá de janelinha nova, pintadinha que é pra modo de chamar os homi... 
    E era um rosário de provocações, que muitas vezes tive que interferir e até ameaçar o cidadão de expulsão... Embora soubesse que aquilo não era possível, mas era só assim que ele parava de incomodar o colega. Além do mais cada aluno que saía significava ganhar menos ainda, pois o sistema de renumeração era um dos mais perversos -  a gente ganhava de acordo com a presença dos alunos. 
    José resistia a todas as provocações. Na verdade, nós –  ele, eu e  a senhora formávamos um belíssimo trio de engolidores de choro...  Desculpa mais hoje não dá pra continuar... Eu é que não estou preparada ainda para o resto desta história.Mas, por falar nisso, eu tenho que engolir o remedinho e caçar cama. Boa noite!
De sua colega e amiga  na real e no virtual, 
                                                                        Tia Bebel

Juiz de Fora,14 de outubro de 2011
Oi, Mari Cesar:  
     Então, aquela chuva de uma semana seguida parece que chegou e ficou. Por isso dei uma adiantadinha no serviço de casa e aproveito a tarde para concluir a história que estou lhe contando. Hoje, na véspera do nosso dia, estou mais que preparada!
     Houve uma noite em que D. Geralda chegou também atrasada, junto com  o José. Eles vinham com uma cara engraçada... Os dois molhados porque tinha chovido e  com pés sujos de lama. Bom... Nisso estávamos todos iguais porque a maioria ali morava em casa de chão e a rua não tinha calçamento. 
    Dona  Geralda veio puxando o José e dizendo:
      ... Anda... Mostra para ela... Mostra!!!  
     Então José  me estendeu um papel amarelado, sujo... Era o seu registro civil, que estava na casa da avó, dentro de baú de guardados, há anos!... Eu o chamei na mesa e pedi aos alunos que abrissem o caderno de dever de aula e copiassem a ficha diária – aquela  com data, nome de escola, professora, aluno e etc.! Então fui lendo baixinho e aos pouquinhos: cartório, data, local etc. Mãe: Maria Aparecida da Silva. Pai: ignorado... Depois, com a mão no ombro dele, mostrei onde estava escrito o seu nome próprio todo: JOSÉ LUIZ DA SILVA NETTO.*** 
     Querida amiga: Não consigo encontrar palavras para definir o que vi no rosto dele, nos olhos dele e na voz dele, quando explodiu e virando-se para a turma, gritou:
      Eu  não se chamo Zé Cata-Cavaco, não!  Meu nome é igualzinho o do meu avô... 
     E chorava... E ria... E ria... E passava de carteira em carteira, mostrando o registro... E os outros  cumprimentando... Todo mundo querendo por a mão naquela sagrada relíquia! 
    Aí naquela noite não deu para segurar o choro nem continuar trabalhando. A aula ficou parecendo último capítulo de novela, onde todos aparecem em cena e comemoram o final feliz. Só o Antônio – o Toin - não quis participar da alegria geral, e juntando seus objetos, saiu enraivecido: 
      Não vou mais estudar nessa porcaria não! Isso aqui tá virando a casa da mãe Joana! 
    Pois é... Ele se foi e, em festa da casa da mãe Joana, não dava mesmo para fazer o que pedia o programa. A turma estava muito assanhada e José Luiz não parava de repetir o seu nome e de querer contar as façanhas do avô, que parecia ser para ele o pai que não conhecera. 
     Aí fiz o que eu iria fazer muitas vezes, nas minhas salas de aula: o assunto ou o conteúdo do dia ficava para trás quando eu encontrava a turma muito agitada com um acontecimento extraclasse mas digno de nota: fiz uma rodinha e conversamos sobre o nome da gente, a família da gente, a vida da gente... Acho também que foi naquela noite, que Deus plantou em mim a semente do que eu seria como mulher e professora: eu continuaria trabalhando mas não engoliria o choro... Tá fazendo 38 anos atrás que eu aprendi, com a minha primeira turma, a transformar a dor em sonho e luta, mesmo em meio a tanto pó de giz...   
     Ah! O Toin, quer dizer, o Antonio? Ele voltou, e aos pouquinhos, descobrimos porque ele era tão revoltado... Mas isto é uma outra história... Depois te conto.  Até a próxima! Um abraço e Feliz Dia Nosso Dia! 
De sua colega e amiga  na real e no virtual, 
                                                                        Tia Bebel
  
                                          
*¹ Referência ao atual Instituto Federal de Educação e Tecnologia (IFET).
*² Referência à parte alta do atual bairro Dom Bosco.
 *³ Termo popular com que se apelidava policiais e militares nos anos 60 e 70.
 * MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização, projeto dos anos 70,que pretendia erradicar o analfabetismo,no Brasil.
 **Referência ao atual bairro Vila Olavo Costa e adjacências.
.***  Nomes e apelidos são fictícios para preservar a privacidade das famílias.


Izabel Cristina Dutra - escrito e reescrito de 11 a 14/10/2011.  

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