Juiz de
Fora, 11 de outubro de 2011.
Querida Mari
Cesar:
Como vai vc.? Espero que esta venha lhe encontrar com plena saúde
e muito amor, juntamente com seu marido e sua filha.Eu também vou bem
animada com que vem a seguir: a publicação do meu livro e outros
sonhos se realizando. Pois é...Outubro chegou e no primeiro domingo, o
G-5 ( a turma da minha filha) se reuniu aqui em casa para matar saudades das
amigas e relembrar os velhos tempos recentes do CTU*¹.
A presença delas encheu a casa das conversas juvenis ora alegres
ora saudosas do tempo do ensino técnico. Elas agora estão na faculdade, umas
fazendo estágio e outras trabalhando. Quando elas fazem alguma queixa, eu
brinco: ─ Bem-vindas ao portal do mundo dos adultos.
Reunião de moças sempre traz lembranças do tempo, em que a
gente tinha chegado lá! Estas lembranças criaram asas e ficaram pairando no ar
primaveril... Mas hoje, quando começou a chover, elas voltaram, feito o sabíá
que fez ninho na garagem da minha vizinha... Ele fica cantando lá fora... Se
chover, ele corre e fica cantando e trinando, à tarde todinha, na beiradinha do
telhado! Pois é... Hoje quando começou a chover, minhas lembranças
voltaram e vieram trinar na minha cabeça...
Eu me lembrei das nossas conversas na biblioteca da escola, nossos
sonhos, nossas lutas e o danado do pó de giz que fazia espirrar e tossir... Aí
me lembrei de quando também do meu começo de carreira, trabalhando com jovens e
adultos. Aí eu comecei a escrever estas memórias... Sei lá se para me
desvencilhar delas ou, para prendê-las para sempre...
Era um outro outubro, uma outra primavera que começou meio seca que
nem esta! Aqui, no Vale do Paraibuna, esta cidade já era pólo, mas não de
tantas coisas... As estações ainda eram bem marcadas... A gente até sabia que
roupa ficava no cabide e a que ficava nos guardados... Chuva vinha quase sempre
a conta certa! Por isso a gente estava estranhando aquela seca... Talvez,
naqueles anos, El ñino e La ñina não tinham tantas chances de aprontar
tanto...
Esta cidade também já era de oportunidades porém de muitas
desigualdades. Aqui no interior, jovens já tinham seu jeito de ser, além
do que se queria deles e, mulheres estavam começando a saber que podiam mais,
muito mais... Eu tinha acabado de tirar o uniforme de normalista... Aquele
bonitinho de camisa branca de mangas dobradas, meias ¾ virando soquetes, e
saias pregueadas variando de comprimento, de acordo com a distância da casa ou
da escola!... Eu estava me preparando para o vestibular. Naqueles tempos,
esta era uma façanha quase incrível de uma mocinha, que morava numa casa
de chão batido, numa rua sem calçamento, na Serra de Cima*². Além
do mais, superando as primeiras ilusões e desilusões do amor e da vida!...
Eu e algumas moças tínhamos chegado ao tal portal mais cedo que o
restante da turma, porque tínhamos que trabalhar e nos virar, muitas vezes
sozinhas...
E foi assim que, depois de algumas substituições em escolas
públicas e particulares, eu fui enfrentar a minha primeira sala de aula,
no extinto Mobral*, numa turma que funcionava numa casinha simples com um
bico de luz, a Escola Municipal Álvaro Braga. Era um tempo de mudanças e ainda
amargávamos os efeitos da ditadura... Foi a minha experiência primeira profissional.
Eu estava aprendendo a secar os olhos, “engolir o choro e continuar trabalhando"...
Era uma primavera seca... Mas, numa certa noite, no começo de
outubro,veio a chuva e veio ele todo molhado... Ele?... Ele era um moço
negro , forte e seu rosto e seus olhos me lembravam do meu avô, Isaías...
Foi numa das noites em que tive de praticar o “engole o choro e continua
trabalhando!...” Olha já está muito tarde e o remedinho já esta fazendo
efeito... Tenho amanhã te conto mais... Boa noite!
De sua colega e amiga na real e no
virtual,
Tia Bebel
Juiz de
Fora, 12 de outubro de 2011.
Oi, Mari Cesar:
Hoje é feriado.Mas estou sozinha em casa. Isis viajou para a
cidade onde o namorado dela está trabalhando. Juca foi fazer meio-expediente
mas ainda não. Então...
Eu estava
lhe falando da minha experiência no Mobral. Lembra? E Aquele rapaz foi
chegando todo molhado! E a turma teve uma reação estranha, pois eram alunos
mais calmos que os outros de outras turmas. Eles fizeram menção de vaiar e o
Toin, quer dizer o Antônio, um dos mais alterados, gritou:
─ Oh! Oh!... Cata-cavaco... Num vem aprontar aqui não! Nós tudo tá
aqui pra aprender a ler...
Antes que a turma se alvoroçasse mais, eu me levantei, pedi
silêncio à turma e perguntei se ele desejava estudar?E ele me respondeu:
─ Ainda dá tempo?
Eu respondi que sempre é tempo quando se queria... E pedi para ele
se enxugar um pouco e dei a única coisa que podia servir de toalha: um pano de
saco alvejado! Enquanto ele se enxugava no banheiro, eu conversei com os alunos
e pedi a eles que nós pudéssemos receber com mais gentileza as outras pessoas.
Todos se calaram porém o mais exaltado ainda acrescentou:
─ Ah... A senhora não conhece ele não, né?... Ele é neto daquele
macumbeiro...
Eu fiz um gesto de silêncio pois o rapaz estava querendo ir
embora. Entretanto, Jorge ainda quis dar a palavra final: Se a senhora quiser a
ficha , os meganhas*³ do Distrito Policial de São Mateus é que sabem da vida
dele!... Eu fiz um gesto impaciente e pedi fizessem a
atividade já explicada e me preparei para atendê-lo. Assim sentado, ele não
parecia tão alto e forte... As mãos dele tremiam e ele fazia um rito estranho
com a boca...
─ Qual é o seu nome? – perguntei. ─ Cata-cavaco
─ Não... Eu
quero o seu nome verdadeiro, que está na certidão...
O rosto dele tremia todo, as mãos crivaram nas bordas da mesa e os
seus olhos ficaram miúdos, enquanto ele se explicava:
─ Lá em casa, todo o mundo me chama assim... Na rua, ainda me
chamam de Zé Cata-cavaco...
Alguém riu e eu pensei que ele ia partir pra cima... Mas ele olhou
pra mim e com voz quase de menino, me explicou:
─ Num tenho registro não! A senhora não pode fazer a minha
matrícula só como José?
Os segundos seguintes me pareceram séculos. Todo o meu ser afluiu ao meu
coração e os meus olhos marejaram... Mas era uma daquelas noites em que iria
praticar o “engole o choro e continua trabalhando”. Então eu coloquei a mão de
leve nos seus braços cruzados em desafio e disse:
─ Olha vamos fazer assim. Eu vou matriculá-lo só como José... Mas
depois, nós precisar o seu nome verdadeiro completo, tá bom assim.
Ele era menos que um pirralho quando afirmou que sim, com a
cabeça... Eu dei o caderno de atividades que era grátis para todos os alunos e
o fiz sentar bem longe do delegado da sala...
Ao terminar a aula, ele saiu correndo na frente dos outros. Então Dona
Geralda, a minha aluna mais velha, que tinha quase setenta anos, e lindos
cabelos brancos.Ela chegou perto de mim e me abraçou carinhosamente. Ela
parecia que tinha entendido toda a minha aflição e emoção diante da
reação da turma e da figura de Cata-cavaco, ou melhor de José. Ela me falou bem
baixinho:
─ Olha, dona professora, a senhora não fica chateada não. Esse povo
é ingnorante! Esse moço e
a família são meio destrambelhados... Mas a vó deles mora lá no Buraco do
Olavo**, perto da minha irmã. O dia que for lá eu pergunto pra ela... Ela deve
ter o registro dele...
Naquele dia, eu fui pra minha casa com a sensação de que caía mais um
pedacinho do mundo na minha cabeça... E em meio ao desassossego, ainda
enfrentei um momento crítico da minha família, que era também meio
destrambelhada que nem a de José... Com a diferença que todos sabiam ler,
escrever e onde estava a sua certidão, menos meu padrasto... Naquela noite
também eu vislumbrei o portal – o tal que a gente atravessa para o mundo dos
adultos... Lembrando de portal, eu já estou atravessando o do sono... Boa noite!
De sua colega e amiga na real e no
virtual,
Tia Bebel
Juiz de
Fora, 13de outubro de 2011.
Oi, Mari Cesar:
Pois é... Hoje eu custei ter tempo para te escrever... É que
tive uma consulta médica, de manhã. À tarde compareci à perícia... Vou ficar de
licença-saúde, até fim de janeiro. Então? Preparada para o resto da história?
Nas noites
que seguiram, ele vinha sempre atrasado mas vinha... Ele?...O rapaz que não
sabia o nome completo... Zé Cata-cavaco, ou melhor, José. Ele chegava com os
pés empoeirados, com jeito de não ter tomado banho... A rua e casa dele eram
iguais às minhas: de chão de terra batida e um banheiro só, para várias
famílias... Ele se assentava na última carteira, no fundo da sala.
Só vinha na frente quando o trabalho era em dupla. Dona Geralda, com seus
lindos cabelos brancos, sempre dava um jeitinho e o escolhia para seu par. E
assim a boa senhora foi costurando comigo a adaptação dele. Não era fácil pois
se a turma o rejeitava em silêncio, Toin – o implacável – sempre
levantava a ficha criminal do rapaz e fazia comentários maldosos sobre a
família dele:
─ Aí... veio esconder dos meganhas? O Chiquinho Mariosa tá caçando
quem foi que roubou as tintas dele! Sua mãe tava bem vendendo tinta, lá na
feira... Sua irmã tá de janelinha nova, pintadinha que é pra modo de chamar os homi...
E era um rosário de provocações, que muitas vezes tive que interferir e
até ameaçar o cidadão de expulsão... Embora soubesse que aquilo não era
possível, mas era só assim que ele parava de incomodar o colega. Além do mais
cada aluno que saía significava ganhar menos ainda, pois o sistema de
renumeração era um dos mais perversos - a gente ganhava de acordo com a
presença dos alunos.
José resistia a todas
as provocações. Na verdade, nós – ele, eu e a senhora formávamos um
belíssimo trio de engolidores de choro... Desculpa mais hoje não dá pra
continuar... Eu é que não estou preparada ainda para o resto desta
história.Mas, por falar nisso, eu tenho que engolir o remedinho e caçar cama.
Boa noite!
De sua colega e amiga na real e no
virtual,
Tia Bebel
Juiz de
Fora,14 de outubro de 2011.
Oi, Mari
Cesar:
Então, aquela chuva de uma semana seguida parece que chegou e
ficou. Por isso dei uma adiantadinha no serviço de casa e aproveito a tarde
para concluir a história que estou lhe contando. Hoje, na véspera do nosso dia,
estou mais que preparada!
Houve uma noite em que D. Geralda chegou também atrasada, junto
com o José. Eles vinham com uma cara engraçada... Os dois molhados porque
tinha chovido e com pés sujos de lama. Bom... Nisso estávamos todos
iguais porque a maioria ali morava em casa de chão e a rua não tinha
calçamento.
Dona Geralda veio puxando o José e dizendo:
─ ... Anda... Mostra para ela... Mostra!!!
Então José me estendeu um papel amarelado, sujo... Era
o seu registro civil, que estava na casa da avó, dentro de baú de guardados, há
anos!... Eu o chamei na mesa e pedi aos alunos que abrissem o caderno de dever
de aula e copiassem a ficha diária – aquela com data, nome de escola,
professora, aluno e etc.! Então fui lendo baixinho e aos pouquinhos: cartório,
data, local etc. Mãe: Maria Aparecida da Silva. Pai: ignorado... Depois, com a
mão no ombro dele, mostrei onde estava escrito o seu nome próprio todo: JOSÉ
LUIZ DA SILVA NETTO.***
Querida amiga: Não consigo encontrar palavras para definir o que
vi no rosto dele, nos olhos dele e na voz dele, quando explodiu e virando-se
para a turma, gritou:
─ Eu não se chamo Zé Cata-Cavaco, não! Meu nome é
igualzinho o do meu avô...
E chorava... E ria... E ria... E passava de carteira em carteira,
mostrando o registro... E os outros cumprimentando... Todo mundo querendo
por a mão naquela sagrada relíquia!
Aí naquela noite não deu para segurar o choro nem continuar trabalhando.
A aula ficou parecendo último capítulo de novela, onde todos aparecem em cena e
comemoram o final feliz. Só o Antônio – o Toin - não quis participar da alegria
geral, e juntando seus objetos, saiu enraivecido:
─ Não vou mais estudar nessa porcaria não! Isso aqui tá virando a
casa da mãe Joana!
Pois é... Ele se foi e, em festa da casa da mãe Joana, não dava
mesmo para fazer o que pedia o programa. A turma estava muito assanhada e José
Luiz não parava de repetir o seu nome e de querer contar as façanhas do avô,
que parecia ser para ele o pai que não conhecera.
Aí fiz o que eu iria fazer muitas vezes, nas minhas salas de aula:
o assunto ou o conteúdo do dia ficava para trás quando eu encontrava a turma
muito agitada com um acontecimento extraclasse mas digno de nota: fiz uma
rodinha e conversamos sobre o nome da gente, a família da gente, a vida da
gente... Acho também que foi naquela noite, que Deus plantou em mim a semente
do que eu seria como mulher e professora: eu continuaria trabalhando mas não
engoliria o choro... Tá fazendo 38 anos atrás que eu aprendi, com a minha primeira
turma, a transformar a dor em sonho e luta, mesmo em meio a tanto pó de
giz...
Ah! O Toin, quer dizer, o Antonio? Ele voltou, e aos pouquinhos,
descobrimos porque ele era tão revoltado... Mas isto é uma outra história...
Depois te conto. Até a próxima! Um abraço e Feliz Dia Nosso Dia!
De sua colega e amiga na real e no
virtual,
Tia Bebel
*² Referência à parte alta do atual bairro Dom Bosco.
*³ Termo popular com que se apelidava policiais e militares nos anos 60 e 70.
* MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização, projeto dos anos 70,que pretendia erradicar o analfabetismo,no Brasil.
**Referência ao atual bairro Vila Olavo Costa e adjacências.
.*** Nomes e apelidos são fictícios para preservar a privacidade das famílias.
Izabel
Cristina Dutra - escrito e reescrito de 11 a 14/10/2011.
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