Juiz de
Fora, 28 de outubro de 2011.
Olá, Tia H.L:
Lembrei de vc. hoje, cedinho, quando fui ao mercadinho... Quer
dizer à venda,.. Quer dizer à mercearia – como querem os ortodoxos.
L á houve um bate-boca, quer dizer um debate, sobre funcionários públicos
e justamente hoje que começa um grande feriadão facultativo, por causa do nosso
dia! E a conversa começou com alguém me perguntando:
─Até que dia cês vão ficar de folga?
E eu respondi:
─ Não sei, querida, eu estou de licença-saúde. Mas meninas da
escola tão pagando greve. Não vão emendar, não!
Aí um outro freguês entrou em nossa defesa:
─ Que é isso, gente? As únicas funcionárias públicas que pagam
greve é professora...
Isso bastou para uma mãe indignada, com ou sem razão, relatar
acidamente:
─ É ...Mas as crianças não tem culpa, não... Elas tão nervosas
porque tão pagando greve mais que os outros, e ficam descontando nos
alunos... Imaginem que uma delas gritou outro dia com o meu filho só porque ele
chamou ela de tia!
Eu quis explicar para ela que, algumas professoras se colocaram contra
essa forma de tratamento, por causa da carga de desvalorização da profissão que
o termo trazia… Mas não deu tempo! Ela se foi, vociferando contra esses
vagabundos e vagabundas que vivem às custas do nosso imposto... O nosso
defensor deu encerramento ao debate, afirmando que o povo não reconhece o
esforço que muitas de nós fazemos, para fazer a máquina do estado
funcionar.
Eu voltei para casa com a sacola cheia de verduras, e a cachola cheia de
indagações sobre o tamanho esta labuta. Aí no meio do caminho tem uma praça.
Então um daqueles decifradores de enigmas da natureza e da humanidade, um dos
meninos que surfam na grama da praça, gritou:
─ Oi, tiaah... Olhaaah aquiiih!... E fez uma manobra radical e de
lá me jogou um beijo, já sabendo que eu ia pedir para ele tomar cuidado!
Pois... minha querida amiga Tia H.L, que vamos fazer se acabamos
tendo uma cota extra de sobrinhos na comunidade? Na verdade, não são os títulos
de tratamento que fazem a diferença e sim o resultado da nossa relação com os
nossos educandos... Acho que foi por isso que você escolheu este pseudônimo!
Houve um tempo que os alunos me chamavam senhora dona professora e o governo
que me contratava como monitora...
Ah... Falando
nisso... Desculpe, na verdade, eu deveria estar contando o fim daquela história
do Antonio Francino, do tijolo por tijolo... Mas amanhã eu lhe conto pois a luz
está piscando, a chuva está armando e é melhor desligara o computador, antes
daquele corte de energia...
De sua
colega e amiga
Tia Bebel
Juiz de
Fora, 29 de outubro de 2011.
Oi! Tudo bem, Tia L. H.:
Afinal ontem ventou, trovejou e até relampejou, mas a chuva foi pouca
para tanto barulho pelo menos aqui no vale do Paraibuna... Pois é, colega, está
preparada para fortes emoções? Bom, naquela época não sabia dimensionar o
tamanho delas, quer dizer, não sei até hoje mas pelo menos não me
atrapalho tanto...
No episódio anterior... Antonio Francino se auto-declarou ajudante de
sala e escolheu José Luiz para seu parceiro. Depois passou a pesquisar
minha vida e minha árvore genealógica, fazendo perguntas que expunham toda a
minha fragilidade... Mas naquele tempo professor era uma autoridade tão
incontestável, a própria turma reagiu contra o seu método investigativo. Mas
pensa que ele desistiu?...
Não! Mudou de jeito. Nas aulas seguintes, ele vinha mais cedo, pegava
sua ficha e da sua carteira, ficava me olhando com aquele olhar de irmão mais
velho ou de inspetor de ensino... Quando José Luiz se atrasava, ele
ralhava... Quando Palmira*, uma linda sarará, vinha com umas roupitas da moda
mas exibicionistas, ele ralhava... E a qualquer gesto ou palavra inconveniente
por parte dos colegas, ele imediatamente reprimia.
De vez em quando vinha na minha mesa para me dar notícias da minha
própria família. Um noite, ele mal entrou e já veio me avisar:
─ Professora, eu convidei sua mãe para o nosso grupo de AA*² Ela
diz que não vai não... Mas um dia ela vai sim...
Foi assim então que descobri que Antonio Francino havia sofrido com o
mesmo problema que assolava a vida de minha mãe e de nossa família: o
alcoolismo. Inclusive ele mesmo acrescentou à sua ficha, o lema deles. Novembro
passou e chegou dezembro.
No dia 3 , ele veio à minha mesa antes de sentar e deu um recado de Dona
Geralda:
─ Ela vai chegar um pouquinho atrasada porque está preparando para
a novena de Natal - e acrescentou à queima roupa:
─ A senhora não crê em santo, não né?! É verdade que a senhora é da
juventude kadercista?
Eu já ia responder quando dona Iná chegou e dessa vez foi ela quem
ralhou:
─ Ô Antonio... Cê não vai parar de futucar a vida da professora,
não?
Eu aproveitei a deixa e iniciei a lição cujas palavras bases eram CASA e
LIMPEZA.Era pra a gente trabalhar a dificuldade ortográfica s/z e depois a
higiene. Aí ficou mais fácil para as alunas. Elas eram na maioria empregadas
domésticas ou prendas do lar, como as chamam formulários, até hoje! E
naquela época, ainda se pensava que faxina era coisa de mulher...
Mas de fato, aquela foi uma noite de lavar a alma e limpar o coração.
Dona Geralda chegou no meio da aula, e antes de sentar, ela me pediu para
fazermos uma oração em favor da família, porque a paróquia estava comemorando A
Sagrada Família.
Então eu me vi diante de um outro desafio: trabalhar com o que hoje
chamamos de diversidade, e respeitar a vontade da maioria sem
desrespeitar as diferenças individuais. Eu disse que nós devíamos consultar a
turma... Mas antes que eu terminasse de falar, José Luiz propôs a votação e ele
mesmo verificou o resultado. A maioria votou sim. Dona Iná votou contra e ficou
sentada em sua carteira, durante a oração. Antonio Francino não votou e ficou
de cabeça baixa o tempo todo...
Quando Dona Geralda terminou o Pai-Nosso e disse amém, ele caiu num
pranto convulsivo e saiu da sala e foi sentar-se lá fora, na escadinha de
pedra na entrada da escola. José Luiz também saiu e ficou lá consolando-o. Eu
tentei continuar a aula normalmente mas o assunto – Choro do Antonio
Francino – dominou a cena. Então fizemos a rodinha para
conversarmos.
Os dois voltaram para
participar para conversa... É... Minha colega, parece que não é hoje que eu consigo
chegar ao capítulo final... Não sei pelos remédios ou se pela forte emoção que
me domina quando me lembro daquele fim de primavera...
De sua colega e amiga
Tia Bebel
Juiz de
Fora, 30 de outubro de 2011.
Minha cara Tia H.L:
Tudo bem? Aqui no vale do Paraibuna, outubro já vai
terminando... Pinga, respinga, venta, troveja e até relampejam, mas ainda
não veio aquela chuva boa lavadeira de almas, ruas e rios...
Pois é... No episódio anterior... Naquele distante fim de
primavera... Às vespéras da novena da Sagrada Família, Antonio Francino, o
durão, não votou e não orou, mas também não engoliu o choro... Ele se
desfez em lágrimas, na escadinha de pedras da entrada da escola. E... Ele ainda
contou com o recurso luxuoso da recém-formada amizade, a de José
Luiz... Eles ficaram lá fora – um chorando e o outro consolando, até que eu
largasse o conteúdo do dia e trabalhasse a lição do dia: Por que ele chorou?...
Por que choramos nós?...
Eles então voltaram e vieram fazer parte da rodinha de conversa. E
Antonio Francino pediu a palavra e como ele mesmo dizia, abriu o bico:
─ Sabe, gente... Esse camarada aqui? – indagou,
apertando de encontro ao peito a cabeça de José Luiz – Ele é meu irmão por
parte de pai... Eu não sou filho de verdade dos meus pais não!Eu sou filho da
minha irmã velha... E o mesmo canalha que fez mal pra minha irmã, fez mal
pra mãe del também ...
Cara amiga, não sei te descrever hoje tudo que nós sentimos neste
momento... Afinal cada de nós tinha uma história tão ou mais difícil que
aquela, debaixo dos tijolos com que tentávamos reconstruir um novo tempo –
tijolo por tijolo! Pena que naquela época eu não tinha experiência suficiente
para registrar tudo o que acontecia extra cartilha, extra caderno de
atividades... Extra-tudo, em sala de aula! O que sucedeu depois daria um
magnífico histórico da Educação. D. Iná, a fiscal de disciplina e a minha
controller de qualidade, levantou-se e foi escrever no quadro, com sua letra de
alfabetizanda :
─“Família é não monte de gente que mora junto. Família é a que cria
e ajuda nós a viver.”
Foi a dica para reorganizarmos corações, mentes e carteiras. Eu fui até
o quadro, pedi licença para fazer uma pequena correção, e transformei a frase
em dever de casa: eles deveriam recortar e colar no caderno as palavras que
formavam a frase. E eles fizeram direitinho essa tarefa. Você pode
imaginar o que seria um caderno de antigamente com um monte de letras coladas com
goma arábica?**
Bem, minha amiga. Dezembro ia chegando ao fim e chegara o recesso de
natal e de ínicio de ano. Não antes de eu receber pequenas lembranças que foram
de florzinhas a sabonetes, que era considerado presente de valor, naquela
época...
Na segunda quinzena de janeiro, quando retomamos as aulas havia muita
novidade para a rodinha de conversas: eu havia passado no Vestibular da
Federal; Antônio Francino havia cedido um pedaço do lote, que ganhara dos
Vicentinos*³, para José Luiz e a outra parte da família; Dona Iná havia partido
em missão de evangelismo com seu marido que era pastor; Dona Geralda estava
acamada por conta de um enfarte; Palmira estava grávida e segundo as
fofoqueiras de plantão, casada na delegacia de menores.
Você já deve ter passado por experiência: alguns alunos voltam lendo e
escrevendo, como se tivessem sido alfabetizados por conta própria e cheios de
novidades. Pois foi isso o que aconteceu com a minha primeira turma...Ficou no
ponto para construções mais ousadas. Mas, naquele ano eu fiz umas dessas
escolhas que, só ao longo da vida, aprendi a resistir e não fazer: deixar que a
necessidade me faça abrir mão do que gosto e dos meus sonhos... Mas isto é uma
outra história...
Um abraço e até breve!
De sua
colega e amiga
Tia Bebel
P.S.: Não se
esqueça de registrar o extra-tudo de sua turma... Isso dá novela e dá livro...
Podes crê... Como dizem meus amigos artesãos, que ficam pertinho do
Pirulito...
** -Eletrola – antigo aparelho de som em caixa, das décadas 60 a 80; goma arábica – um tipo de cola que ainda hoje só encontramos nos Correios.
“XYZ” – Referência às gerações pós-tudo dos anos 80,90 e 00..., citada em entrevista de Afonso Romano de Santana, a Roberto D’Ávila, na TVE, dia 30/10/2011.
Izabel
Cristina Dutra - escrito e reescrito de 28 a 30/10/2011.
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