segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Memórias dos sonhos,da luta e do pó de giz 2




Juiz de Fora, 28 de outubro de 2011. 
Olá, Tia H.L:
      Lembrei de vc. hoje, cedinho, quando fui ao mercadinho... Quer dizer à venda,.. Quer dizer à mercearia – como querem os ortodoxos. 
    L á houve um bate-boca, quer dizer um debate, sobre funcionários públicos e justamente hoje que começa um grande feriadão facultativo, por causa do nosso dia! E a conversa começou com alguém  me perguntando: 
     Até que dia cês vão ficar de folga? 
     E eu respondi: 
     ─ Não sei, querida, eu estou  de licença-saúde. Mas meninas da escola tão pagando greve. Não vão emendar, não! 
     Aí um  outro freguês entrou em nossa defesa: 
      Que é isso, gente? As únicas funcionárias públicas que pagam greve é professora... 
    Isso bastou para uma mãe indignada, com ou sem razão, relatar acidamente:
     É ...Mas as crianças não tem culpa, não... Elas tão nervosas porque tão  pagando greve mais que os outros, e ficam descontando nos alunos... Imaginem que uma delas gritou outro dia com o meu filho só porque ele chamou ela de tia! 
   Eu quis explicar para ela que, algumas professoras se colocaram contra essa forma de tratamento, por causa da carga de desvalorização da profissão que o termo trazia… Mas não deu tempo! Ela se foi, vociferando contra esses vagabundos e vagabundas que vivem às custas do nosso imposto... O nosso defensor deu encerramento ao debate, afirmando que o povo não reconhece o esforço que muitas de nós fazemos, para fazer a máquina do estado funcionar. 
   Eu voltei para casa com a sacola cheia de verduras, e a cachola cheia de indagações sobre o tamanho esta labuta. Aí no meio do caminho tem uma praça. Então um daqueles decifradores de enigmas da natureza e da humanidade, um dos meninos que surfam na grama da praça, gritou: 
      Oi, tiaah... Olhaaah aquiiih!... E fez uma manobra radical e de lá me jogou um beijo, já sabendo que eu ia pedir para ele tomar cuidado! 
    Pois... minha querida amiga Tia H.L, que vamos  fazer se acabamos tendo uma cota extra de sobrinhos na comunidade? Na verdade, não são os títulos de tratamento que fazem a diferença e sim o resultado da nossa relação com os nossos educandos... Acho que foi por isso que você escolheu este pseudônimo! Houve um tempo que os alunos me chamavam senhora dona professora e o governo que me contratava como monitora... 
   Ah...  Falando nisso... Desculpe, na verdade, eu deveria estar contando o fim daquela história do Antonio Francino, do tijolo por tijolo... Mas amanhã eu lhe conto pois a luz está piscando, a chuva está armando e é melhor desligara o computador, antes daquele corte de energia...
De sua colega e amiga
Tia Bebel

Juiz de Fora, 29 de outubro de 2011.
Oi! Tudo bem, Tia L. H.:
    Afinal ontem ventou, trovejou e até relampejou, mas a chuva foi pouca para tanto barulho pelo menos aqui no vale do Paraibuna... Pois é, colega, está preparada para fortes emoções? Bom, naquela época não sabia dimensionar o tamanho delas, quer dizer, não sei até hoje mas pelo menos  não me atrapalho tanto... 
   No episódio anterior... Antonio Francino se auto-declarou ajudante de sala e escolheu José Luiz para seu parceiro. Depois passou a pesquisar minha vida e minha árvore genealógica, fazendo perguntas que expunham toda a minha fragilidade... Mas naquele tempo professor era uma autoridade tão incontestável, a própria turma reagiu contra o seu método investigativo. Mas pensa que ele desistiu?... 
    Não! Mudou de jeito. Nas aulas seguintes, ele vinha mais cedo, pegava sua ficha e da sua carteira, ficava me olhando com aquele olhar de irmão mais velho ou  de inspetor de ensino... Quando José Luiz se atrasava, ele ralhava... Quando Palmira*, uma linda sarará, vinha com umas roupitas da moda mas exibicionistas, ele ralhava... E a qualquer gesto ou palavra inconveniente por parte dos colegas, ele imediatamente reprimia. 
     De vez em quando vinha na minha mesa para me dar notícias da minha própria família. Um noite, ele mal entrou e já veio me avisar: 
      Professora, eu convidei sua mãe para o nosso grupo de AA*² Ela diz que não vai não... Mas um dia ela vai sim...  
    Foi assim então que descobri que Antonio Francino havia sofrido com o mesmo problema que assolava a vida de minha mãe e de nossa família: o alcoolismo. Inclusive ele mesmo acrescentou à sua ficha, o lema deles. Novembro passou e chegou dezembro.  
    No dia 3 , ele veio à minha mesa antes de sentar e deu um recado de Dona Geralda: 
    Ela vai chegar um pouquinho atrasada porque está preparando para a novena de Natal - e  acrescentou à queima roupa:
    A senhora não crê em santo, não né?! É verdade que a senhora é da juventude kadercista? 
     Eu já ia responder quando dona Iná chegou e dessa vez foi ela quem ralhou: 
     Ô Antonio... Cê não vai parar de futucar a vida da professora, não? 
    Eu aproveitei a deixa e iniciei a lição cujas palavras bases eram CASA e LIMPEZA.Era pra a gente trabalhar a dificuldade ortográfica s/z e depois a higiene. Aí ficou mais fácil para as alunas. Elas eram na maioria empregadas domésticas ou prendas do lar, como as chamam formulários, até hoje!  E naquela época, ainda se pensava que faxina era coisa de mulher... 
    Mas de fato, aquela foi uma noite de lavar a alma e limpar o coração. Dona Geralda chegou no meio da aula, e antes de sentar, ela me pediu para fazermos uma oração em favor da família, porque a paróquia estava comemorando A Sagrada  Família. 
   Então eu me vi diante de um outro desafio: trabalhar com o que hoje chamamos de diversidade, e  respeitar a vontade da maioria sem desrespeitar as diferenças individuais. Eu disse que nós devíamos consultar a turma... Mas antes que eu terminasse de falar, José Luiz propôs a votação e ele mesmo verificou o resultado. A maioria votou sim. Dona Iná votou contra e ficou sentada em sua carteira, durante a oração. Antonio Francino não votou e ficou de cabeça baixa o tempo todo... 
     Quando Dona Geralda terminou o Pai-Nosso e disse amém, ele caiu num pranto convulsivo e saiu  da sala e foi sentar-se lá fora, na escadinha de pedra na entrada da escola. José Luiz também saiu e ficou lá consolando-o. Eu tentei continuar a aula normalmente mas o assunto – Choro  do Antonio Francino – dominou  a cena. Então fizemos a rodinha para conversarmos. 
    Os dois voltaram para participar para conversa... É... Minha colega, parece que não é hoje que eu consigo chegar ao capítulo final... Não sei pelos remédios ou se pela forte emoção que me domina quando  me lembro daquele  fim de primavera...
De sua colega e amiga
Tia Bebel

Juiz de Fora, 30 de outubro de 2011.  
Minha cara Tia H.L: 
     Tudo bem?  Aqui no vale do Paraibuna, outubro já vai terminando... Pinga, respinga, venta, troveja e  até relampejam, mas ainda não veio aquela chuva boa lavadeira de almas, ruas e rios... 
    Pois é...  No episódio anterior... Naquele distante fim de primavera... Às vespéras da novena da Sagrada Família, Antonio Francino, o durão,  não votou e não orou, mas também não engoliu o choro... Ele se desfez em lágrimas, na escadinha de pedras da entrada da escola. E... Ele ainda contou com o recurso luxuoso da recém-formada amizade, a   de José Luiz... Eles ficaram lá fora – um chorando e o outro consolando, até que eu largasse o conteúdo do dia e trabalhasse a lição do dia: Por que ele chorou?... Por que choramos nós?... 
    Eles então voltaram e vieram fazer parte da rodinha de conversa. E Antonio Francino pediu a palavra e como ele mesmo dizia, abriu o bico: 
    Sabe, gente... Esse camarada aqui?  – indagou,  apertando de encontro ao peito a cabeça de José Luiz – Ele é meu irmão por parte de pai... Eu não sou filho de verdade dos meus pais não!Eu sou filho da minha irmã velha... E o mesmo canalha que fez  mal pra minha irmã, fez mal pra mãe del também ... 
    Cara  amiga, não sei te descrever hoje tudo que nós sentimos neste momento... Afinal cada de nós tinha uma história tão ou mais difícil que aquela, debaixo dos tijolos com que tentávamos reconstruir um novo tempo – tijolo por tijolo! Pena que naquela época eu não tinha experiência suficiente para registrar tudo o que acontecia extra cartilha, extra caderno de atividades... Extra-tudo, em sala de aula! O que sucedeu depois daria um magnífico  histórico da Educação. D. Iná, a fiscal de disciplina e a minha controller de qualidade, levantou-se e foi escrever no quadro, com sua letra de alfabetizanda : 
   “Família é não monte de gente que mora junto. Família é a que cria e ajuda nós a viver.” 
    Foi a dica para reorganizarmos corações, mentes e carteiras. Eu fui até o quadro, pedi licença para fazer uma pequena correção, e transformei a frase em dever de casa: eles deveriam recortar e colar no caderno as palavras que formavam a frase.  E eles fizeram direitinho essa tarefa. Você pode imaginar o que seria um caderno de antigamente com um monte de letras coladas com goma arábica?** 
   Bem, minha amiga. Dezembro ia chegando ao fim e chegara o recesso de natal e de ínicio de ano. Não antes de eu receber pequenas lembranças que foram de florzinhas a sabonetes, que era considerado presente de valor, naquela época... 
    Na segunda quinzena de janeiro, quando retomamos as aulas havia muita novidade para a rodinha de conversas: eu havia passado no Vestibular da Federal; Antônio Francino havia cedido um pedaço do lote, que ganhara dos Vicentinos*³, para José Luiz e a outra parte da família; Dona Iná havia partido em missão de evangelismo com seu marido que era pastor; Dona Geralda estava acamada por conta de um enfarte;  Palmira estava grávida e segundo as fofoqueiras de plantão, casada na delegacia de menores. 
   Você já deve ter passado por experiência: alguns alunos voltam lendo e escrevendo, como se tivessem sido alfabetizados por conta própria e cheios de novidades. Pois foi isso o que aconteceu com a minha primeira turma...Ficou no ponto para construções mais ousadas. Mas, naquele ano eu fiz umas dessas escolhas que, só ao longo da vida, aprendi a resistir e não fazer: deixar que a necessidade me faça abrir mão do que gosto e dos meus sonhos... Mas isto é uma outra história... 
   Um abraço e até breve!
De sua colega e amiga
Tia Bebel  
P.S.: Não se esqueça de registrar o extra-tudo de sua turma... Isso dá novela e dá livro... Podes crê... Como dizem meus amigos artesãos, que ficam pertinho  do Pirulito...

*-Nomes e apelidos são fictícios a fim de preservar a privacidade das famílias.
** -Eletrola – antigo aparelho de som em caixa, das décadas 60 a 80; goma arábica – um tipo de cola  que ainda hoje só encontramos nos Correios.
“XYZ” – Referência às gerações pós-tudo dos anos 80,90 e 00..., citada em entrevista de Afonso Romano de Santana, a Roberto D’Ávila, na TVE, dia 30/10/2011.
Izabel Cristina Dutra - escrito e reescrito de 28 a 30/10/2011.  

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