Juiz de Fora, 2 de dezembro de 2011.
Querida Tia Terezinha:
E aí? Sobreviveu aquele café frio naquela fria
e chuvosa tarde de novembro, véspera de feriadão pra uns e, feriadinho para
outros? Então... Finalmente a gente se encontrou naquele
supermercado, depois de tantos anos!
Eu tava lá no caixa das prioridades que demora mais que os
outros, passando compras e também trocando dicas e receitas com uma senhorinha
do cabelo ilusão-lilás. E aí...vc.!... Vc. me interrompeu:
─ Não perde a mania de ensinar, hein...Tiaah!
Eu te reconheci logo e respondi:
─ ... E de aprender também!
Aí só deu a gente nos caixas e nas portas dos armazéns da
vida ... A gente conversou e foi tão legal... Lembra? A gente
relembrou daqueles novembros e daqueles dezembros passados e a gente riu muito,
quando nos demos conta que estávamos em pleno mais um novembro... Então... Lá
se foi mais um novembro... Ela ficou... Ela? Aquela chuvinha da perna comprida
e preguiçosa... Se ela chover de madrugada, tudo bem... A gente tá dormindo
mesmo... Mas... E quando ela chove no começo ou no fim de expediente... E se
ela vier em dezembro, véspera de tudo: natal, prova final, fim de semestre
aprovação e reprovação... Uau! ...E pra quem trabalha no turno noturno?
Eheheh... Chuva... Eh... Amiga e colega... Lá vem mais chuva
fininha e enjoada de dezembro e lá vem lembrança de uma certa noite de chuva e
de fim de semestre.
Eheheh... Chuva... Hoje vc. não me incomoda tanto assim... Mas houve um
tempo... Eheheh... Um tempo de chuva fina no fim de tarde e... Durante a noite
toda... Era um tempo daqueles... Lembra? Eu havia deixado de trabalhar no
Mobral* e tinha passado no vestibular da UFJF**. Lembra? Era um tempo que
precisava eu estudar de dia e dar aula à noite e ter um salário mais ou menos
fixo. E mais, um tempo de escolher entre o que gostava e não gostava mas era
necessário... Então eu fui lecionar num cursinho particular preparatório para o
chamado Madureza, nomeado por um certo artigo de lei do ensino*** que eu não me
lembro qual agora...
Mas lembro da sala cheia de alunos que me olhavam como que indagando: ─ Será que
essa professora moreninha, baixinha vai resolver nosso problema? Serah??? Será
que ela é mesmo professora de Comunicação e Redação? Será que vai lecionar todo
o programa, a tempo dos exames? Eu sabia que o tempo era pouco e o conteúdo era
bem maior, mas eu já praticava aquela técnica de vez em quando ou de vez em
sempre... ??? ...Aquela técnica de deixar pra lá o conteúdo e ceder ao que
estava posto: sentimentos controversos, angústias discentes que não há
gramática que resolva. Só uma boa conversa em rodinha e uma composição daquelas
(que hoje chamam de redação, produção de texto, uso dos gêneros literários e
etc.).
Pois é... A gente tava lendo e interpretando o texto-base. E no
meio do assunto, a gente acabou falando de Natal, de décimo - terceiro... Da
chuva fina e enjoada... Da lama nos sapatos – a maioria de nós morava em
ruas sem calçamento. Do bicão do bairro que tava com a água barrenta, e na época,
o bicão e os poços domésticos eram a única fonte de água potável em várias
regiões da cidade. De repente, alguém na sala ficou com raiva e teve a coragem
de revelar sua raiva e fez dela a ira dos anjos, ou como chamamos agora de
indignação... Eheheh... Minha amiga... Havia muitos indignados naquele
tempo... Muitos sujeitos simples mas não ocultos! Anjos ou não!... A maioria
costumava afogar sua indignação em um trago da branquinha, mas havia os que a
levavam às últimas conseqüências... Tanto que a nossa terra tão gentil está
marcada do sangue deles...
Pois é... o Oswaldo (com W mesmo), um desses indignados dos anos
70, não chegou a tanto, mas botou a boca no trombone, ou como diria Antonio
Francino, abriu o bico:
─ Esse negócio de Natal é uma besteira... Jesus nem nasceu nesse
dia e tem mais o povo bebe, come e gasta dinheiro que nem tem... Enquanto isso
fica jorrando água barrenta no bicão e o governo nem se preocupa... Pois não tá
tudo com o bucho cheio de décimo - terceiro?...
Aí foi um silêncio profundo na turma que foi quebrado pela voz fraquinha
de Dona Neuzinha, uma senhora franzininha que muita gente não entendia porque
ela tava querendo estudar naquela idade... Não importava... Eu e ela sabíamos
que ela queria dar orgulho pro neto que estava estudando medicina na UFJF**...
Pois é... Dona Neuzinha, da voz fraquinha, veio em meu auxílio:
─ É... Nós tem muito que agradecer... Casa, comida, trabalho e
saúde... Lugar quentinho pra passar a noite de Natal... Pior é pras crianças
que ficam na rua que nem aquela menina da história que eu li pro meu netinho
caçula...
Eh... Minha querida amiga Terezinha, naquele tempo, já havia crianças nas
ruas: trabalhando, pedindo esmola e sem um lugar quentinho pra dormir,
principalmente num Natal chuvoso ou com nevasca, que nem na história daquela
menina... Ela?... A Pequena Vendedora de Fósforos, umas das mais belas e
tristes histórias de Natal – não sei se é de Andersen ou dos Irmãos Grimm
ou...? Ela só não morreu de frio naquela noite também porque virou tema
de uma composição, aonde nós íamos trabalhar o que era parágrafo e também
justiça social, trabalho e renda... Tá estranhando? Mas era assim que
estava na apostila que vinha do governo estadual! Mas isto também é uma
outra história... Te conto amanhã porque agora a chuva fina batendo no telhado,
a música suave no MP3 mais os remedinhos estão me dando um soninho... Graças a
Deus, hoje eu tenho um cantinho mais que quentinho pra dormir... Tchau...
De sua colega e amiga
Tia Bebel.
Juiz de Fora, 3 de dezembro de 2011-12-03
Querida Tia Terezinha:
E
aí... Nada como uma boa noite de chuva fininha e de sono bem dormida... O sol
está piscando entre nuvens... Não sei pra quem pisca porque o povo anda
azafamado gastando a metade do décimo - terceiro que alguns patrões (não o
nosso), em respeito à lei, já pagaram! Bem... Os que tinham algo a
receber, pois tem uns que já devendo o abono do ano da Copa... Bem... Nada que
uma professora brasileira desconheça... E tudo que reconhecemos e relembramos
naquele papo de caixa de supermercado... Ah... A apostila até que era boa...
Que apostila?
Aquela, do curso preparatório, a que me referi,
ontem, que tinha que trabalhar parágrafos com justiça social e renda. A gente
ia fazer uma composição partindo da história A pequena... Ahhá!! Já sei que vc.
está pirando o cabeção... Que tem a coitada da pequena vendedora de fósforos
com isto tudo?... Não lembra?... Ela foi citada por Dona Neuzinha como criança
de rua abandonada e morta de frio... Dona Neuzinha, que Deus a tenha... Se os
redatores do ECADE*¹ a tivessem conhecido, iriam com certeza aproveitar muito
de suas falas nos artigos mais importantes do estatuto... A composição dela foi
um arrazoado discurso indignado com o abandono de crianças, mal que já assolava
essa terra tão gentil... E os parágrafos? Tô ouvindo vc. perguntar! Acho que
eles aprenderam muito sobre eles, mas muito mais sobre o que veio depois. Dona
Neuzinha quis ler o seu texto em voz alta e ela começou assim:
─ Pra ser Natal de verdade! O Natal
está chegando... Mas pra quem?...
A turma já começou a se remexer e a cochichar só de
ouvir as primeiras frases. Nuvens de um debate acalorado desaguaram sobre
todos, salpicando as festividades e as desigualdades da festa cristã de
indignação. Eh... eh... Querida amiga! Acho foi bem naquela época que se
iniciou a minha incompatibilidade com os tempos previstos pelas apostilas
oficiais, no desenvolvimento de certos itens... O tempo previsto para trabalhar
parágrafos e justiça social e trabalhista era de 2 aulas de 50 minutos, e já
estava quase no fim da 3ª e ainda não havíamos concluído nem a leitura do
texto-base, que tinha sido preterido por uma composição que recebeu um
pedacinho de cada aluno.
Hoje quando analiso livros didáticos e proposta
curriculares, sinto que eu e algumas colegas de profissão nos antecipamos e
praticamos alguns dos parâmetros contemporâneos, por intuição, eu acho... Nós
já achávamos que o Professor Freire*² tinha mesmo razão... É mais fácil ensinar
quando se deixa o aluno apresentar sua leitura de mundo. É... Tem uma colega
que não gosta das idéias dele até hoje, e ela fala muito brava:
─ Quero ver ele aqui agora dando aula
pra esses moleques de agora... A leitura mundo deles é uma...piiiin!
Bão... Retomando o outro rumo da prosa, finalmente
eu consegui terminar o tópico dos parágrafos, utilizando da própria conclusão
do debate que redigimos coletivamente: que na verdade ninguém sabia o dia do
Nascimento de Jesus; mas que era bom comemorar simbolicamente e que estava na
hora da gente resgatar o sentido solidário e coletivo da festa... Pena que
naquela época, a gente quase não registrava os melhores momentos... E os poucos
registros se perderam no tempo. Ia valer à pena reler tudo aquilo de
novo...
Mas, toda vez que chega este dezembro frio e chuvoso,
e eu vejo um reflexo – um pequeno arco-íris nas gotinhas de chuva, que tornam
mágicas aquelas luzinhas de Natal que enfeitam nossas ruas, eu me lembro de
Dona Neuzinha e penso que ela, há 37 anos, pensou na nossa cidade assim: toda
iluminada e uma porção de árvores de um Natal como pensou Betinho*³, que se
quer mais solidário... Ao menos, já temos muita gente que socorre os pequenos
vendedores de tudo e suas famílias, antes que morram de frio e fome... É por
isso que aproveito pra te desejar
─ Bom Natal e Feliz Ano Novo!...
Bem assim tradicional... Na semana, que vem eu vou
mandar a minha contribuição para a festa que vc. fazer pra os seus afilhados,
ok?... Ah... Aquela minha colega anti-freireana? Isto é uma outra
história que depois te conto... Agora, embora não chova nem fino nem grosso, os
remedinhos me embalaram mais cedo. Tchau!!!
De sua amiga e colega
Tia Bebel.
** Universidade Federal de Juiz de Fora.
*** - Art.99 – artigo da Lei de Ensino, que regulamentava o antigo Supletivo do 1º Grau, nos anos 70.
...? Hans Christian Andersen, Irmãos Grimm e Charles Perrault, escritores da Literatura Infantil universal
*¹ - Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n.8.069,13/07/2011.
*² - Paulo Reglus Neves Freire- professor e pensador da Educação brasileira (1921-1997)
*³ - Natal do Betinho – Natal Sem Fome, campanha lançada, em 1994, pelo sociólogo brasileiro Herbert José de Souza (1935-1997)
Izabel
Cristina Dutra - escrito e reescrito de 2b a 7/12/2011.