segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Memórias dos sonhos,da luta e do pó de giz 3



 Juiz de Fora, 2 de dezembro de 2011.
Querida Tia Terezinha:
        E aí?  Sobreviveu aquele café frio naquela fria e chuvosa tarde de novembro, véspera de feriadão pra uns e, feriadinho para outros?    Então... Finalmente a gente se encontrou naquele supermercado, depois de tantos anos!
      Eu tava lá  no caixa das prioridades que demora mais que os outros, passando compras e também trocando dicas e receitas com uma senhorinha do cabelo ilusão-lilás. E aí...vc.!... Vc. me interrompeu:
      Não perde a mania de ensinar, hein...Tiaah! 
    Eu te reconheci logo e respondi:
        ... E de aprender  também! 
    Aí só deu a gente nos caixas  e nas portas dos armazéns da  vida ... A gente conversou e foi tão legal...  Lembra? A gente relembrou daqueles novembros e daqueles dezembros passados e a gente riu muito, quando nos demos conta que estávamos em pleno mais um novembro... Então... Lá se foi mais um novembro... Ela ficou... Ela? Aquela chuvinha da perna comprida e preguiçosa...  Se ela chover de madrugada, tudo bem... A gente tá dormindo mesmo... Mas... E quando ela chove no começo ou no fim de expediente... E se ela vier em dezembro, véspera de tudo: natal, prova final, fim de semestre aprovação e reprovação... Uau! ...E pra quem trabalha no turno noturno? 
     Eheheh... Chuva...  Eh... Amiga e colega... Lá vem mais chuva fininha e enjoada de dezembro e lá vem lembrança de uma certa noite de chuva e de fim de semestre. 
    Eheheh... Chuva... Hoje vc. não me incomoda tanto assim... Mas houve um tempo... Eheheh... Um tempo de chuva fina no fim de tarde e... Durante a noite toda... Era um tempo daqueles... Lembra? Eu havia deixado de trabalhar no Mobral* e tinha passado no vestibular da UFJF**.  Lembra? Era um tempo que precisava eu estudar de dia e dar aula à noite e ter um salário mais ou menos fixo. E mais, um tempo de escolher entre o que gostava e não gostava mas era necessário... Então eu fui lecionar num cursinho particular preparatório para o chamado Madureza, nomeado por um certo artigo de lei do ensino*** que eu não me lembro qual agora... 
    Mas lembro da sala cheia de alunos que me olhavam como que indagando: Será que essa professora moreninha, baixinha vai resolver nosso problema? Serah??? Será que ela é mesmo professora de Comunicação e Redação? Será que vai lecionar todo o programa, a tempo dos exames? Eu sabia que o tempo era pouco e o conteúdo era bem maior, mas eu já praticava aquela técnica de vez em quando ou de vez em sempre... ??? ...Aquela técnica de deixar pra lá o conteúdo e ceder ao que estava posto: sentimentos controversos, angústias discentes que não há gramática que resolva. Só uma boa conversa em rodinha e uma composição daquelas (que hoje chamam de redação, produção de texto, uso dos gêneros literários e etc.). 
      Pois é...  A gente tava lendo e interpretando o texto-base. E no meio do assunto, a gente acabou falando de Natal, de décimo - terceiro... Da chuva fina e enjoada...  Da lama nos sapatos – a maioria de nós morava em ruas sem calçamento. Do bicão do bairro que tava com a água barrenta, e na época, o bicão e os poços domésticos eram a única fonte de água potável em várias regiões da cidade. De repente, alguém na sala ficou com raiva e teve a coragem de revelar sua raiva e fez dela a ira dos anjos, ou como chamamos agora de indignação...   Eheheh... Minha amiga... Havia muitos indignados naquele tempo... Muitos sujeitos simples mas não ocultos! Anjos ou não!... A maioria costumava afogar sua indignação em um trago da branquinha, mas havia os que a levavam às últimas conseqüências... Tanto que a nossa terra tão gentil está marcada do sangue deles...
     Pois é... o Oswaldo (com W mesmo), um desses indignados dos anos 70, não chegou a tanto, mas botou a boca no trombone, ou como diria Antonio Francino, abriu o bico:
       Esse negócio de Natal é uma besteira... Jesus nem nasceu nesse dia e tem mais o povo bebe, come e gasta dinheiro que nem tem... Enquanto isso fica jorrando água barrenta no bicão e o governo nem se preocupa... Pois não tá tudo com o bucho cheio de décimo - terceiro?... 
   Aí foi um silêncio profundo na turma que foi quebrado pela voz fraquinha de Dona Neuzinha, uma senhora franzininha que muita gente não entendia porque ela tava querendo estudar naquela idade... Não importava... Eu e ela sabíamos que ela queria dar orgulho pro neto que estava estudando medicina na UFJF**... Pois é... Dona Neuzinha, da voz fraquinha, veio em meu auxílio:
     É... Nós tem muito que agradecer... Casa, comida, trabalho e saúde... Lugar quentinho pra passar a noite de Natal... Pior é pras crianças que ficam na rua que nem aquela menina da história que eu li pro meu netinho caçula... 
   Eh... Minha querida amiga Terezinha, naquele tempo, já havia crianças nas ruas: trabalhando, pedindo esmola e sem um lugar quentinho pra dormir, principalmente num Natal chuvoso ou com nevasca, que nem na história daquela menina... Ela?... A Pequena Vendedora de Fósforos, umas das mais belas e tristes histórias de Natal – não sei se é de Andersen ou dos Irmãos Grimm ou...? Ela só não morreu de frio naquela noite também  porque virou tema de uma composição, aonde nós íamos trabalhar o que era parágrafo e também justiça social, trabalho e renda... Tá estranhando?  Mas era assim que estava na apostila que vinha do governo estadual!  Mas isto também é uma outra história... Te conto amanhã porque agora a chuva fina batendo no telhado, a música suave no MP3 mais os remedinhos estão me dando um soninho... Graças a Deus, hoje eu tenho um cantinho mais que quentinho pra dormir... Tchau... 
                                                                           De sua colega e amiga
Tia Bebel.


                                Juiz de Fora, 3 de dezembro de 2011-12-03
Querida Tia Terezinha:
      E aí... Nada como uma boa noite de chuva fininha e de sono bem dormida... O sol está piscando entre nuvens... Não sei pra quem pisca porque o povo anda azafamado gastando a metade do décimo - terceiro que alguns patrões (não o nosso), em respeito à lei, já pagaram!  Bem... Os que tinham algo a receber, pois tem uns que já devendo o abono do ano da Copa... Bem... Nada que uma professora brasileira desconheça... E tudo que reconhecemos e relembramos naquele papo de caixa de supermercado... Ah... A apostila até que era boa... Que apostila? 
    Aquela, do curso preparatório, a que me referi, ontem, que tinha que trabalhar parágrafos com justiça social e renda. A gente ia fazer uma composição partindo da história A pequena... Ahhá!! Já sei que vc. está pirando o cabeção... Que tem a coitada da pequena vendedora de fósforos com isto tudo?... Não lembra?... Ela foi citada por Dona Neuzinha como criança de rua abandonada e morta de frio... Dona Neuzinha, que Deus a tenha... Se os redatores do ECADE*¹ a tivessem conhecido, iriam com certeza aproveitar muito de suas falas nos artigos mais importantes do estatuto... A composição dela foi um arrazoado discurso indignado com o abandono de crianças, mal que já assolava essa terra tão gentil... E os parágrafos? Tô ouvindo vc. perguntar! Acho que eles aprenderam muito sobre eles, mas muito mais sobre o que veio depois. Dona Neuzinha quis ler o seu texto em voz alta e ela começou assim:
       Pra ser Natal de verdade! O Natal está chegando... Mas pra quem?... 
      A turma já começou a se remexer e a cochichar só de ouvir as primeiras frases. Nuvens de um debate acalorado desaguaram sobre todos, salpicando as festividades e as desigualdades da festa cristã de indignação. Eh... eh... Querida amiga! Acho foi bem naquela época que se iniciou a minha incompatibilidade com os tempos previstos pelas apostilas oficiais, no desenvolvimento de certos itens... O tempo previsto para trabalhar parágrafos e justiça social e trabalhista era de 2 aulas de 50 minutos, e já estava quase no fim da 3ª e ainda não havíamos concluído nem a leitura do texto-base, que tinha sido preterido por uma composição que recebeu um pedacinho de cada aluno. 
     Hoje quando analiso livros didáticos e proposta curriculares, sinto que eu e algumas colegas de profissão nos antecipamos e praticamos alguns dos parâmetros contemporâneos, por intuição, eu acho... Nós já achávamos que o Professor Freire*² tinha mesmo razão... É mais fácil ensinar quando se deixa o aluno apresentar sua leitura de mundo. É... Tem uma colega que não gosta das idéias dele até hoje, e ela fala muito brava: 
      Quero ver ele aqui agora dando aula pra esses moleques de agora... A leitura mundo deles é uma...piiiin!
     Bão... Retomando o outro rumo da prosa, finalmente eu consegui terminar o tópico dos parágrafos, utilizando da própria conclusão do debate que redigimos coletivamente: que na verdade ninguém sabia o dia do Nascimento de Jesus; mas que era bom comemorar simbolicamente e que estava na hora da gente resgatar o sentido solidário e coletivo da festa... Pena que naquela época, a gente quase não registrava os melhores momentos... E os poucos registros se perderam no tempo. Ia valer à pena reler tudo aquilo de novo... 
    Mas, toda vez que chega este dezembro frio e chuvoso, e eu vejo um reflexo – um pequeno arco-íris nas gotinhas de chuva, que tornam mágicas aquelas luzinhas de Natal que enfeitam nossas ruas, eu me lembro de Dona Neuzinha e penso que ela, há 37 anos, pensou na nossa cidade assim: toda iluminada e uma porção de árvores de um Natal como pensou Betinho*³, que se quer mais solidário... Ao menos, já temos muita gente que socorre os pequenos vendedores de tudo e suas famílias, antes que morram de frio e fome... É por isso que aproveito pra te desejar 
    ─ Bom Natal e Feliz Ano Novo!... 
     Bem assim tradicional... Na semana, que vem eu vou mandar a minha contribuição para a festa que vc. fazer pra os seus afilhados, ok?... Ah... Aquela minha colega anti-freireana?  Isto é uma outra história que depois te conto... Agora, embora não chova nem fino nem grosso, os remedinhos me embalaram mais cedo. Tchau!!!  
De sua amiga e colega
Tia Bebel. 

*MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização, projeto que pretendia erradicar o analfabetismo, durante os governos militares.
** Universidade Federal de Juiz de Fora.
*** - Art.99 – artigo da Lei de Ensino, que regulamentava o antigo Supletivo do 1º Grau, nos anos 70.
...? Hans Christian Andersen, Irmãos Grimm e Charles Perrault, escritores da Literatura Infantil universal
*¹ - Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n.8.069,13/07/2011.
*² - Paulo Reglus  Neves Freire- professor e pensador da Educação brasileira (1921-1997)
*³ - Natal do Betinho – Natal Sem Fome, campanha lançada, em 1994, pelo sociólogo brasileiro Herbert José de Souza (1935-1997)

Izabel Cristina Dutra - escrito e reescrito de 2b a 7/12/2011.                                   

Memórias dos sonhos,da luta e do pó de giz 2




Juiz de Fora, 28 de outubro de 2011. 
Olá, Tia H.L:
      Lembrei de vc. hoje, cedinho, quando fui ao mercadinho... Quer dizer à venda,.. Quer dizer à mercearia – como querem os ortodoxos. 
    L á houve um bate-boca, quer dizer um debate, sobre funcionários públicos e justamente hoje que começa um grande feriadão facultativo, por causa do nosso dia! E a conversa começou com alguém  me perguntando: 
     Até que dia cês vão ficar de folga? 
     E eu respondi: 
     ─ Não sei, querida, eu estou  de licença-saúde. Mas meninas da escola tão pagando greve. Não vão emendar, não! 
     Aí um  outro freguês entrou em nossa defesa: 
      Que é isso, gente? As únicas funcionárias públicas que pagam greve é professora... 
    Isso bastou para uma mãe indignada, com ou sem razão, relatar acidamente:
     É ...Mas as crianças não tem culpa, não... Elas tão nervosas porque tão  pagando greve mais que os outros, e ficam descontando nos alunos... Imaginem que uma delas gritou outro dia com o meu filho só porque ele chamou ela de tia! 
   Eu quis explicar para ela que, algumas professoras se colocaram contra essa forma de tratamento, por causa da carga de desvalorização da profissão que o termo trazia… Mas não deu tempo! Ela se foi, vociferando contra esses vagabundos e vagabundas que vivem às custas do nosso imposto... O nosso defensor deu encerramento ao debate, afirmando que o povo não reconhece o esforço que muitas de nós fazemos, para fazer a máquina do estado funcionar. 
   Eu voltei para casa com a sacola cheia de verduras, e a cachola cheia de indagações sobre o tamanho esta labuta. Aí no meio do caminho tem uma praça. Então um daqueles decifradores de enigmas da natureza e da humanidade, um dos meninos que surfam na grama da praça, gritou: 
      Oi, tiaah... Olhaaah aquiiih!... E fez uma manobra radical e de lá me jogou um beijo, já sabendo que eu ia pedir para ele tomar cuidado! 
    Pois... minha querida amiga Tia H.L, que vamos  fazer se acabamos tendo uma cota extra de sobrinhos na comunidade? Na verdade, não são os títulos de tratamento que fazem a diferença e sim o resultado da nossa relação com os nossos educandos... Acho que foi por isso que você escolheu este pseudônimo! Houve um tempo que os alunos me chamavam senhora dona professora e o governo que me contratava como monitora... 
   Ah...  Falando nisso... Desculpe, na verdade, eu deveria estar contando o fim daquela história do Antonio Francino, do tijolo por tijolo... Mas amanhã eu lhe conto pois a luz está piscando, a chuva está armando e é melhor desligara o computador, antes daquele corte de energia...
De sua colega e amiga
Tia Bebel

Juiz de Fora, 29 de outubro de 2011.
Oi! Tudo bem, Tia L. H.:
    Afinal ontem ventou, trovejou e até relampejou, mas a chuva foi pouca para tanto barulho pelo menos aqui no vale do Paraibuna... Pois é, colega, está preparada para fortes emoções? Bom, naquela época não sabia dimensionar o tamanho delas, quer dizer, não sei até hoje mas pelo menos  não me atrapalho tanto... 
   No episódio anterior... Antonio Francino se auto-declarou ajudante de sala e escolheu José Luiz para seu parceiro. Depois passou a pesquisar minha vida e minha árvore genealógica, fazendo perguntas que expunham toda a minha fragilidade... Mas naquele tempo professor era uma autoridade tão incontestável, a própria turma reagiu contra o seu método investigativo. Mas pensa que ele desistiu?... 
    Não! Mudou de jeito. Nas aulas seguintes, ele vinha mais cedo, pegava sua ficha e da sua carteira, ficava me olhando com aquele olhar de irmão mais velho ou  de inspetor de ensino... Quando José Luiz se atrasava, ele ralhava... Quando Palmira*, uma linda sarará, vinha com umas roupitas da moda mas exibicionistas, ele ralhava... E a qualquer gesto ou palavra inconveniente por parte dos colegas, ele imediatamente reprimia. 
     De vez em quando vinha na minha mesa para me dar notícias da minha própria família. Um noite, ele mal entrou e já veio me avisar: 
      Professora, eu convidei sua mãe para o nosso grupo de AA*² Ela diz que não vai não... Mas um dia ela vai sim...  
    Foi assim então que descobri que Antonio Francino havia sofrido com o mesmo problema que assolava a vida de minha mãe e de nossa família: o alcoolismo. Inclusive ele mesmo acrescentou à sua ficha, o lema deles. Novembro passou e chegou dezembro.  
    No dia 3 , ele veio à minha mesa antes de sentar e deu um recado de Dona Geralda: 
    Ela vai chegar um pouquinho atrasada porque está preparando para a novena de Natal - e  acrescentou à queima roupa:
    A senhora não crê em santo, não né?! É verdade que a senhora é da juventude kadercista? 
     Eu já ia responder quando dona Iná chegou e dessa vez foi ela quem ralhou: 
     Ô Antonio... Cê não vai parar de futucar a vida da professora, não? 
    Eu aproveitei a deixa e iniciei a lição cujas palavras bases eram CASA e LIMPEZA.Era pra a gente trabalhar a dificuldade ortográfica s/z e depois a higiene. Aí ficou mais fácil para as alunas. Elas eram na maioria empregadas domésticas ou prendas do lar, como as chamam formulários, até hoje!  E naquela época, ainda se pensava que faxina era coisa de mulher... 
    Mas de fato, aquela foi uma noite de lavar a alma e limpar o coração. Dona Geralda chegou no meio da aula, e antes de sentar, ela me pediu para fazermos uma oração em favor da família, porque a paróquia estava comemorando A Sagrada  Família. 
   Então eu me vi diante de um outro desafio: trabalhar com o que hoje chamamos de diversidade, e  respeitar a vontade da maioria sem desrespeitar as diferenças individuais. Eu disse que nós devíamos consultar a turma... Mas antes que eu terminasse de falar, José Luiz propôs a votação e ele mesmo verificou o resultado. A maioria votou sim. Dona Iná votou contra e ficou sentada em sua carteira, durante a oração. Antonio Francino não votou e ficou de cabeça baixa o tempo todo... 
     Quando Dona Geralda terminou o Pai-Nosso e disse amém, ele caiu num pranto convulsivo e saiu  da sala e foi sentar-se lá fora, na escadinha de pedra na entrada da escola. José Luiz também saiu e ficou lá consolando-o. Eu tentei continuar a aula normalmente mas o assunto – Choro  do Antonio Francino – dominou  a cena. Então fizemos a rodinha para conversarmos. 
    Os dois voltaram para participar para conversa... É... Minha colega, parece que não é hoje que eu consigo chegar ao capítulo final... Não sei pelos remédios ou se pela forte emoção que me domina quando  me lembro daquele  fim de primavera...
De sua colega e amiga
Tia Bebel

Juiz de Fora, 30 de outubro de 2011.  
Minha cara Tia H.L: 
     Tudo bem?  Aqui no vale do Paraibuna, outubro já vai terminando... Pinga, respinga, venta, troveja e  até relampejam, mas ainda não veio aquela chuva boa lavadeira de almas, ruas e rios... 
    Pois é...  No episódio anterior... Naquele distante fim de primavera... Às vespéras da novena da Sagrada Família, Antonio Francino, o durão,  não votou e não orou, mas também não engoliu o choro... Ele se desfez em lágrimas, na escadinha de pedras da entrada da escola. E... Ele ainda contou com o recurso luxuoso da recém-formada amizade, a   de José Luiz... Eles ficaram lá fora – um chorando e o outro consolando, até que eu largasse o conteúdo do dia e trabalhasse a lição do dia: Por que ele chorou?... Por que choramos nós?... 
    Eles então voltaram e vieram fazer parte da rodinha de conversa. E Antonio Francino pediu a palavra e como ele mesmo dizia, abriu o bico: 
    Sabe, gente... Esse camarada aqui?  – indagou,  apertando de encontro ao peito a cabeça de José Luiz – Ele é meu irmão por parte de pai... Eu não sou filho de verdade dos meus pais não!Eu sou filho da minha irmã velha... E o mesmo canalha que fez  mal pra minha irmã, fez mal pra mãe del também ... 
    Cara  amiga, não sei te descrever hoje tudo que nós sentimos neste momento... Afinal cada de nós tinha uma história tão ou mais difícil que aquela, debaixo dos tijolos com que tentávamos reconstruir um novo tempo – tijolo por tijolo! Pena que naquela época eu não tinha experiência suficiente para registrar tudo o que acontecia extra cartilha, extra caderno de atividades... Extra-tudo, em sala de aula! O que sucedeu depois daria um magnífico  histórico da Educação. D. Iná, a fiscal de disciplina e a minha controller de qualidade, levantou-se e foi escrever no quadro, com sua letra de alfabetizanda : 
   “Família é não monte de gente que mora junto. Família é a que cria e ajuda nós a viver.” 
    Foi a dica para reorganizarmos corações, mentes e carteiras. Eu fui até o quadro, pedi licença para fazer uma pequena correção, e transformei a frase em dever de casa: eles deveriam recortar e colar no caderno as palavras que formavam a frase.  E eles fizeram direitinho essa tarefa. Você pode imaginar o que seria um caderno de antigamente com um monte de letras coladas com goma arábica?** 
   Bem, minha amiga. Dezembro ia chegando ao fim e chegara o recesso de natal e de ínicio de ano. Não antes de eu receber pequenas lembranças que foram de florzinhas a sabonetes, que era considerado presente de valor, naquela época... 
    Na segunda quinzena de janeiro, quando retomamos as aulas havia muita novidade para a rodinha de conversas: eu havia passado no Vestibular da Federal; Antônio Francino havia cedido um pedaço do lote, que ganhara dos Vicentinos*³, para José Luiz e a outra parte da família; Dona Iná havia partido em missão de evangelismo com seu marido que era pastor; Dona Geralda estava acamada por conta de um enfarte;  Palmira estava grávida e segundo as fofoqueiras de plantão, casada na delegacia de menores. 
   Você já deve ter passado por experiência: alguns alunos voltam lendo e escrevendo, como se tivessem sido alfabetizados por conta própria e cheios de novidades. Pois foi isso o que aconteceu com a minha primeira turma...Ficou no ponto para construções mais ousadas. Mas, naquele ano eu fiz umas dessas escolhas que, só ao longo da vida, aprendi a resistir e não fazer: deixar que a necessidade me faça abrir mão do que gosto e dos meus sonhos... Mas isto é uma outra história... 
   Um abraço e até breve!
De sua colega e amiga
Tia Bebel  
P.S.: Não se esqueça de registrar o extra-tudo de sua turma... Isso dá novela e dá livro... Podes crê... Como dizem meus amigos artesãos, que ficam pertinho  do Pirulito...

*-Nomes e apelidos são fictícios a fim de preservar a privacidade das famílias.
** -Eletrola – antigo aparelho de som em caixa, das décadas 60 a 80; goma arábica – um tipo de cola  que ainda hoje só encontramos nos Correios.
“XYZ” – Referência às gerações pós-tudo dos anos 80,90 e 00..., citada em entrevista de Afonso Romano de Santana, a Roberto D’Ávila, na TVE, dia 30/10/2011.
Izabel Cristina Dutra - escrito e reescrito de 28 a 30/10/2011.  

Memórias dos sonhos,da luta e do pó de giz 1


Juiz de Fora, 11 de outubro de 2011.
Querida Mari Cesar:
     Como vai vc.? Espero que esta venha lhe encontrar com plena saúde e muito amor, juntamente com seu marido e sua filha.Eu também vou bem  animada com  que vem a seguir: a publicação do meu livro e outros sonhos se realizando. Pois é...Outubro  chegou e no primeiro domingo, o G-5 ( a turma da minha filha) se reuniu aqui em casa para matar saudades das amigas e relembrar os velhos tempos recentes do CTU*¹. 
   A presença delas encheu a casa das conversas juvenis ora alegres ora saudosas do tempo do ensino técnico. Elas agora estão na faculdade, umas fazendo estágio e outras trabalhando. Quando elas fazem alguma queixa, eu brinco:   Bem-vindas ao portal do mundo dos adultos. 
     Reunião de  moças sempre traz lembranças do tempo, em que a gente tinha chegado lá! Estas lembranças criaram asas e ficaram pairando no ar primaveril... Mas hoje, quando começou a chover, elas voltaram, feito o sabíá que fez ninho na garagem da minha vizinha... Ele fica cantando lá fora... Se chover, ele corre e fica cantando e trinando, à tarde todinha, na beiradinha do telhado!  Pois é... Hoje quando começou a chover, minhas lembranças voltaram e vieram trinar na minha cabeça...  
     Eu me lembrei das nossas conversas na biblioteca da escola, nossos sonhos, nossas lutas e o danado do pó de giz que fazia espirrar e tossir... Aí me lembrei de quando também do meu começo de carreira, trabalhando com jovens e adultos. Aí eu  comecei a escrever estas memórias... Sei lá se para me desvencilhar delas ou,  para prendê-las para sempre...  
     Era um outro outubro, uma outra primavera  que começou meio seca que nem esta! Aqui, no Vale do Paraibuna, esta cidade já era pólo, mas não de tantas coisas... As estações ainda eram bem marcadas... A gente até sabia que roupa ficava no cabide e a que ficava nos guardados... Chuva vinha quase sempre a conta certa! Por isso a gente estava estranhando aquela seca... Talvez, naqueles anos, El ñino e La ñina não tinham tantas  chances de aprontar tanto... 
     Esta cidade também já era de oportunidades porém de muitas desigualdades.  Aqui no interior, jovens já tinham seu jeito de ser, além do que se queria deles e, mulheres estavam começando a saber que podiam mais, muito mais... Eu tinha acabado de tirar o uniforme de normalista... Aquele bonitinho de camisa branca de mangas dobradas, meias ¾ virando soquetes, e saias pregueadas variando de comprimento, de acordo com a distância da casa ou da escola!...  Eu estava me preparando para o vestibular. Naqueles tempos, esta era  uma façanha quase incrível de uma mocinha, que morava numa casa de chão batido, numa rua sem calçamento, na Serra de  Cima*².  Além do mais, superando as primeiras ilusões e desilusões do amor e da vida!...  Eu e algumas moças tínhamos chegado ao tal portal mais cedo que o restante da turma, porque tínhamos que trabalhar e nos virar, muitas vezes sozinhas... 
     E foi assim que, depois de algumas substituições em escolas públicas e particulares, eu  fui enfrentar a minha primeira sala de aula, no extinto Mobral*, numa turma que funcionava numa casinha simples  com um bico de luz, a Escola Municipal Álvaro Braga. Era um tempo de mudanças e ainda amargávamos os efeitos da ditadura... Foi a minha experiência primeira profissional. Eu estava aprendendo a secar os olhos, “engolir o choro e continuar trabalhando"... 
     Era uma primavera seca... Mas, numa certa noite, no começo de outubro,veio a chuva e veio ele todo molhado... Ele?... Ele era  um moço negro , forte e seu rosto e seus olhos  me lembravam do meu avô, Isaías... Foi numa das noites em  que tive de praticar o “engole o choro e continua trabalhando!...” Olha já está muito tarde e o remedinho já esta fazendo efeito... Tenho amanhã te conto mais... Boa noite!
De sua colega e amiga  na real e no virtual, 
                                                                        Tia Bebel


Juiz de Fora, 12 de outubro de 2011.
Oi, Mari Cesar: 
     Hoje é feriado.Mas estou sozinha em casa. Isis viajou para a cidade onde o namorado dela está trabalhando. Juca foi fazer meio-expediente mas ainda não. Então... 
Eu estava lhe falando da minha experiência no Mobral. Lembra? E  Aquele rapaz foi chegando todo molhado! E a turma teve uma reação estranha, pois eram alunos mais calmos que os outros de outras turmas. Eles fizeram menção de vaiar e o Toin, quer dizer o Antônio, um dos mais alterados, gritou:
      Oh! Oh!... Cata-cavaco... Num vem aprontar aqui não! Nós tudo tá aqui pra aprender a ler... 
     Antes que a turma se alvoroçasse mais, eu me levantei, pedi silêncio à turma e perguntei se ele desejava estudar?E ele me respondeu:
      Ainda dá tempo? 
     Eu respondi que sempre é tempo quando se queria... E pedi para ele se enxugar um pouco e dei a única coisa que podia servir de toalha: um pano de saco alvejado! Enquanto ele se enxugava no banheiro, eu conversei com os alunos e pedi a eles que nós pudéssemos receber com mais gentileza as outras pessoas. Todos se calaram porém o mais exaltado ainda acrescentou: 
    Ah... A senhora não conhece ele não, né?... Ele é neto daquele macumbeiro... 
     Eu fiz um gesto de silêncio pois o rapaz estava querendo ir embora. Entretanto, Jorge ainda quis dar a palavra final: Se a senhora quiser a ficha , os meganhas*³ do Distrito Policial de São Mateus é que sabem da vida dele!...      Eu fiz um gesto impaciente e pedi fizessem a atividade já explicada e me preparei para atendê-lo. Assim sentado, ele não parecia tão alto e forte... As mãos dele tremiam e ele fazia um rito estranho com a boca... 
      Qual é o seu nome? – perguntei. Cata-cavaco Não... Eu quero o seu nome verdadeiro, que está na certidão... 
     O rosto dele tremia todo, as mãos crivaram nas bordas da mesa e os seus olhos ficaram miúdos, enquanto ele se explicava:
      Lá em casa, todo o mundo me chama assim... Na rua, ainda me chamam de Zé Cata-cavaco... 
     Alguém riu e eu pensei que ele ia partir pra cima... Mas ele olhou pra mim e com voz quase de menino, me explicou:
    Num tenho registro não! A senhora não pode fazer a minha matrícula só como José? 
    Os segundos seguintes me pareceram séculos. Todo o meu ser afluiu ao meu coração e os meus olhos marejaram... Mas era uma daquelas noites em que iria praticar o “engole o choro e continua trabalhando”. Então eu coloquei a mão de leve nos seus braços cruzados em desafio e disse: 
      Olha vamos fazer assim. Eu vou matriculá-lo só como José... Mas depois, nós precisar o seu nome verdadeiro completo, tá bom assim. 
     Ele era  menos que um pirralho quando afirmou que sim, com a cabeça... Eu dei o caderno de atividades que era grátis para todos os alunos e o fiz sentar bem longe do delegado da sala... 
    Ao terminar a aula, ele saiu correndo na frente dos outros. Então Dona Geralda, a minha aluna mais velha, que tinha quase setenta anos, e lindos cabelos brancos.Ela chegou perto de mim e me abraçou carinhosamente. Ela parecia que tinha entendido toda a minha aflição e emoção diante  da reação da turma e da figura de Cata-cavaco, ou melhor de José. Ela me falou bem baixinho: 
    Olha, dona professora, a senhora não fica chateada não. Esse povo é ingnorante! Esse moço e a família são meio destrambelhados... Mas a vó deles mora lá no Buraco do Olavo**, perto da minha irmã. O dia que for lá eu pergunto pra ela... Ela deve ter o registro  dele... 
    Naquele dia, eu fui pra minha casa com a sensação de que caía mais um pedacinho do mundo na minha cabeça... E em meio ao desassossego, ainda enfrentei um momento crítico da minha família, que era também meio destrambelhada que nem a de José... Com a diferença que todos sabiam ler, escrever e onde estava a sua certidão, menos meu padrasto... Naquela noite também eu vislumbrei o portal – o tal que a gente atravessa para o mundo dos adultos... Lembrando de portal, eu já estou atravessando o do sono... Boa noite!
De sua colega e amiga  na real e no virtual, 
                                                                        Tia Bebel

           Juiz de Fora, 13de outubro de 2011. 
Oi, Mari Cesar: 
     Pois é...  Hoje eu custei ter tempo para te escrever... É que tive uma consulta médica, de manhã. À tarde compareci à perícia... Vou ficar de licença-saúde, até fim de janeiro. Então? Preparada para o resto da história?
Nas noites que seguiram, ele vinha sempre atrasado mas vinha... Ele?...O rapaz que não sabia o nome completo... Zé Cata-cavaco, ou melhor, José. Ele chegava com os pés empoeirados, com jeito de não ter tomado banho... A rua e casa dele eram iguais  às minhas: de chão de terra batida e um banheiro só, para várias famílias...  Ele se assentava na  última carteira, no fundo da sala. Só vinha na frente quando o trabalho era em dupla. Dona Geralda, com seus lindos cabelos brancos, sempre dava um jeitinho e o escolhia para seu par. E assim a boa senhora foi costurando comigo a adaptação dele. Não era fácil pois se a turma o rejeitava em silêncio, Toin – o  implacável – sempre  levantava a ficha criminal do rapaz e fazia comentários maldosos sobre a família dele:
      Aí... veio esconder dos meganhas? O Chiquinho Mariosa tá caçando quem foi que roubou as tintas dele! Sua mãe tava bem vendendo tinta, lá na feira... Sua irmã tá de janelinha nova, pintadinha que é pra modo de chamar os homi... 
    E era um rosário de provocações, que muitas vezes tive que interferir e até ameaçar o cidadão de expulsão... Embora soubesse que aquilo não era possível, mas era só assim que ele parava de incomodar o colega. Além do mais cada aluno que saía significava ganhar menos ainda, pois o sistema de renumeração era um dos mais perversos -  a gente ganhava de acordo com a presença dos alunos. 
    José resistia a todas as provocações. Na verdade, nós –  ele, eu e  a senhora formávamos um belíssimo trio de engolidores de choro...  Desculpa mais hoje não dá pra continuar... Eu é que não estou preparada ainda para o resto desta história.Mas, por falar nisso, eu tenho que engolir o remedinho e caçar cama. Boa noite!
De sua colega e amiga  na real e no virtual, 
                                                                        Tia Bebel

Juiz de Fora,14 de outubro de 2011
Oi, Mari Cesar:  
     Então, aquela chuva de uma semana seguida parece que chegou e ficou. Por isso dei uma adiantadinha no serviço de casa e aproveito a tarde para concluir a história que estou lhe contando. Hoje, na véspera do nosso dia, estou mais que preparada!
     Houve uma noite em que D. Geralda chegou também atrasada, junto com  o José. Eles vinham com uma cara engraçada... Os dois molhados porque tinha chovido e  com pés sujos de lama. Bom... Nisso estávamos todos iguais porque a maioria ali morava em casa de chão e a rua não tinha calçamento. 
    Dona  Geralda veio puxando o José e dizendo:
      ... Anda... Mostra para ela... Mostra!!!  
     Então José  me estendeu um papel amarelado, sujo... Era o seu registro civil, que estava na casa da avó, dentro de baú de guardados, há anos!... Eu o chamei na mesa e pedi aos alunos que abrissem o caderno de dever de aula e copiassem a ficha diária – aquela  com data, nome de escola, professora, aluno e etc.! Então fui lendo baixinho e aos pouquinhos: cartório, data, local etc. Mãe: Maria Aparecida da Silva. Pai: ignorado... Depois, com a mão no ombro dele, mostrei onde estava escrito o seu nome próprio todo: JOSÉ LUIZ DA SILVA NETTO.*** 
     Querida amiga: Não consigo encontrar palavras para definir o que vi no rosto dele, nos olhos dele e na voz dele, quando explodiu e virando-se para a turma, gritou:
      Eu  não se chamo Zé Cata-Cavaco, não!  Meu nome é igualzinho o do meu avô... 
     E chorava... E ria... E ria... E passava de carteira em carteira, mostrando o registro... E os outros  cumprimentando... Todo mundo querendo por a mão naquela sagrada relíquia! 
    Aí naquela noite não deu para segurar o choro nem continuar trabalhando. A aula ficou parecendo último capítulo de novela, onde todos aparecem em cena e comemoram o final feliz. Só o Antônio – o Toin - não quis participar da alegria geral, e juntando seus objetos, saiu enraivecido: 
      Não vou mais estudar nessa porcaria não! Isso aqui tá virando a casa da mãe Joana! 
    Pois é... Ele se foi e, em festa da casa da mãe Joana, não dava mesmo para fazer o que pedia o programa. A turma estava muito assanhada e José Luiz não parava de repetir o seu nome e de querer contar as façanhas do avô, que parecia ser para ele o pai que não conhecera. 
     Aí fiz o que eu iria fazer muitas vezes, nas minhas salas de aula: o assunto ou o conteúdo do dia ficava para trás quando eu encontrava a turma muito agitada com um acontecimento extraclasse mas digno de nota: fiz uma rodinha e conversamos sobre o nome da gente, a família da gente, a vida da gente... Acho também que foi naquela noite, que Deus plantou em mim a semente do que eu seria como mulher e professora: eu continuaria trabalhando mas não engoliria o choro... Tá fazendo 38 anos atrás que eu aprendi, com a minha primeira turma, a transformar a dor em sonho e luta, mesmo em meio a tanto pó de giz...   
     Ah! O Toin, quer dizer, o Antonio? Ele voltou, e aos pouquinhos, descobrimos porque ele era tão revoltado... Mas isto é uma outra história... Depois te conto.  Até a próxima! Um abraço e Feliz Dia Nosso Dia! 
De sua colega e amiga  na real e no virtual, 
                                                                        Tia Bebel
  
                                          
*¹ Referência ao atual Instituto Federal de Educação e Tecnologia (IFET).
*² Referência à parte alta do atual bairro Dom Bosco.
 *³ Termo popular com que se apelidava policiais e militares nos anos 60 e 70.
 * MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização, projeto dos anos 70,que pretendia erradicar o analfabetismo,no Brasil.
 **Referência ao atual bairro Vila Olavo Costa e adjacências.
.***  Nomes e apelidos são fictícios para preservar a privacidade das famílias.


Izabel Cristina Dutra - escrito e reescrito de 11 a 14/10/2011.