O telefone
tocou. E era uma amiga e colega: ─ Oi, Tiah
Bebel... Tô te ligando porque v.c ficou
de registrar num dos seus blogs aquela história me contou, quando a gente tava
tomando cafezinho lá, no Cine Palace... ─ Ah!!! Eh mesmuh! Então é pra jah!!!
Juiz
de Fora, 11 de junho de 2015.
Querida Tiah Tetê*:
Como vai? Tudo bem?
Tah a pé
ou tah de trem? Kkkkkkkkkkkkk!... Lembra dessa brincadeirinhah?
Então...Realmente eu
lhe prometi registrar essa história e vou registrá-la
aqui nessas memórias dos sonhos, das lutas e, do pó de giz...
Então... Era uma vez
nos anos 80... Era o mês de agosto... Eu
estava desempregada e, dando aulas particulares em casa. E depois de estar
algum tempo afastada oficialmente do magistério, numa tentativa de me dar bem e ganhar
dinheiro em outras profissões,
assumi novamente um cargo de
professora regente, uma turma de 2ª série... (era assim que se
chamava e dividia os níveis de ensino, naquela época)...
Era no I.S.S.I., uma escola particular da Zona
Norte do RJ/Rj, que ficava entre Ramos e
Penha. Ela mantinha um convênio com a
Prefeitura, para receber um cota de alunos de uma casa de acolhimento (ou de
correção ou de sei lá quê), um desses Centros de Bem(ou Mal)-Estar de Menores.
Que legal, neh?! Mas não demorou muito eu entender que o
convênio era mais por causa das verbas extras recebidas pela prestação de
serviço social, do que pelos acolhidos(as). Como naquele filme “Escritores da
Liberdade”*¹... Lembra?!...
Eram tempos difíceis, na
Zona Norte da Cidade Maravilhosa. O processo de ocupação e/ou invasão dos morros e das ,
comunidades próximas , já estava iniciando a sua fase mais violenta.
As escolas do entorno se enchiam de
procedimentos e, de regras às vezes
absurdas, para se proteger!
Pois bem... Algumas turmas
tinha mais acolhidos(as) que as outras.
E essa distribuição não era feita por faixa etária, não! Era por grau
de“periculosidade” e, pelo grau de
experiência da professora e, dos outros alunos com os riscos sociais...
Então... Assim que assumi a turma, estranhei a estranha
diferença entre ela e outras. A maioria dos alunos, era negros e pardos
pobres, oriundos das comunidades, (que só eram nominadas favelas, na surdina...) E muitos dos acolhidos, eram separados e destinados à evasão ou repetência, porque afinal “ eles não aprendiam nadah!”)
E aí, houve
imediatamente um remanejamento geral, nas
outras turmas e advinha para qual turma? A minha!!
E entre eles, estava W........H........da Silva*: prenome difícil
cheio de H,K,L e Ys...* ,s obrenome bem fácil e bem brasileiro... E vida difícil e, bem comum a de muitas crianças brasileiras!!!
Não foi a
necessidade do aluno(a) e/ou da sua turma ,que determinou esse remanejamento... Foi
o meu histórico de professora e/ou de pessoa, passado “in off” , por algum
colega mais próximo da diretora. Eu já tinha fama de tirar algo das "pedras"...
Então... Ele era W........H........da Silva* (como
estava na sua certidão)., e/ou Well “o
inocente” (como alguns profissionais se referiam a ele, no escondido da sala
dos professores)...
Pois eh...Vou
chamá-lo simplesmente de Welzinho* mesmo, como os coleguinhas o chamavam.
Então...Welzinho * veio parar na minha turma e, com uma marca feia, estranha
na ficha de desempenho: menor infrator não alfabetizado e co alto grau de defasagem ,na capacidade de aprender!!! ...
E ele tinha
12 anos e o mundo nas costas! Era um menino negro, com uma pele linda de bebê bem cuidado e, um doce
olhar negro cheio de dor, que não condiziam com sua marca.
O histórico da família era de lascar - era o que hoje os teóricos do desenvolvimento chamariam risco social de altíssima complexidade. E ele era infrequente e, quando estava presente ,era só de corpo! Quando se manifestava, estava zangado e/ou destilando ironia...
Aí... Vc. pensa que
realmente a ficha condizia com ele, neh?! Não!!! Pois, rapidamente passava ao
estado de uma tristeza profunda...
Entre
as regras absurdas, estava a de proibir os alunos de nos chamarem de tia/tio
(foi nessa época que surgiu esse apelido pra
mestras/mestres).
Assim cheguei na escola, questionei a proibição, pois
me parecia uma questão de acordo, de combinação entre nós e os alunos. E logo
na primeira aula, desobedeci a regra da proibição e, combinei com meus alunos
que podiam me chamar Professora, de Dona ou só de Izabel e, que Tia também
valia, mas tudo com respeito e, pra
facilitar nossa comunicação.
Assim eles me nominavam do jeito que queriam, mas sabiam que eu os chamaria pelo pronome e até pelo apelido, se quisessem e, só em caso de
coincidência, eu citaria o sobrenome. A comunhão entre nós se estabeleceu rápido e , a turma se tornou expressivamente produtiva.
Menos Welzinho*!... Ele, quando queria me
chamar, e usava um tal de “tinhaann”... “tinhaann” e ,muitas vezes em tom
irônico. E eu não o atendia e/ou parava
em frente à sua carteira, dizia:
─Wel...., eu a sou Profª Izabel. Vc. pode me chamar de Tia mas direito, com
respeito...
E aí eu adoçava a voz:
─ E isso se vc. quiser que eu seja mesmo sua Tia.
A
reação dele variava: ou ele ficava com raiva e, não se dirigia mais a mim. Ou
então ele me chamava aos gritos:
─ Dona
Izabeeeuuuh...
No começo de setembro, ele sumiu ... Mas...
Oh ... Esta história é curta mas tem
muito detalhe... Te conto o resto
depois, porque agora vou ter que aviar a janta...
Tchau!!!
Tiah
Bebel!!!...
O telefone
tocou. Era a Tia Tetê me cobrando...─ Oi, Tiah
Bebel... Agosto tah terminando... E tô
te ligando porque v.c ficou de finalizar aquela história do Welzinho...
Lembra... ─ Ah!!! Eh mesmuh! Então é pra jah!!!
Juiz
de Fora, 28 de agosto 2015.
Querida Tiah Tetê:
Como vai? Tudo bem?
Tah a pé
ou tah de ....?
Bom ... Agosto tah
terminando mesmo e setembro vem aí!!! A primavera também
vem aí...
Então... Vamos falar de Welzinho... Aquele menino, que em suas 10
primaveras, soçobrava, em meio às tempestades da vida...
Pois eh... No começo
de setembro, ele sumiu... E aos poucos profissionais, que fizeram questão de
saber dele, a diretora respondia: ─ É por causa do resultado da nova audiência
sobre aquele caso dele... Cês sabem que ele sempre some depois, neh?!!
E quando
eu quis saber detalhes e outras informações sobre o caso dele, uma das gestoras me tirou, respondendo:
─ Tem certeza que quer conhecer os detalhes
escabrosos do caso?!...Fica na sua!...
E daí mesmo, que
eu devesse e tentasse, eu não conseguia apurar qual era a infração...
E em outubro, na semana da criança, ele – o Welzinho* - visitou a escola e ,no meio da festa,
eu o persegui e me abri:
─ Oi, Welzinho*... Tá querendo matar os
colegas e a sua tia de saudades?!...
Ele não respondeu... Mas, no dia
seguinte, ele estava lah!!!
Era um dia da semana em que eu ficava só uma hora
com a turma. Depois, havia aula de educação física e música...
E por falar
nisso, excelentes colegas de profissão: o Prof. L.C e, a Profª S.M* ! Nós formamos
um trio, em defesa tanto dos alunos(as) da comunidade e principalmente dos
acolhidos(as)... Concordávamos com algumas ações e regras, mas discordávamos de
outras, com a mesma intensidade.
Entre as regras absurdas que nós abominávamos,
havia uma que proibia que a professora regente ficasse a sós com qualquer aluno(a)
e, se ele(a) se negasse a estar nas aulas especializadas, tinha que “ ficar de
castigo” na sala da coordenadora...
Ah! E a gente não podia assistir aula
especializada não!
Pois bem, nós várias vezes
em reunião pedagógica, tentamos argumentar que poderia ser um bom momento pra
gente reforço de aprendizagem e se aproximar mais e melhor dos colegas e, dos(as) alunos(as), com problemas. Mas éramos combatidos, firmemente: ao invés disso, era melhor ficar na sala dos professores, fingindo estar
planejando, mas na verdade, fofocando e tomando café e mais café... Acho que
surgiu aí minha dependência química de cafeína...
Então... Na sua volta pessoal às
aulas, naquele dia, Welzinho mais uma vez não quis ir à aula de educação
física... E naquele dia, eu quebrei mais uma vez, com as regras absurdas...
Pedi ao professor pra deixá-lo comigo, mas que não comunicasse à
administração... Ele piscou o olho e disse:
─ Stand by
me...
Sozinhos, na sala de aula, Welzinho foi lá pro fundo e, eu me sentei na
mesa e fiquei uns minutos, observando
ele futucando na fechadura da janela e da porta... Olhando para cima e para
baixo... Fazendo piruetas inesperadas!! E então, rompi o silêncio e perguntei:
─ O que vamos fazer, Welzinho?!...
─ Nada! Não
quero fazer nada...
Mas... De repente, veio em minha direção e gritouh no meu ouvido:
─ Tiah!!!
Posso te contar um segredoooh?!
─ Pode!.. –
respondi cochichando...
E aí, ele segurou o meu rosto com as mãozinhas trêmulas
e suadas e cochichou também:
─ Eu não fiz aquilo com aquele menino nãuuum!
Foi o meu tinhon!!! Eu sou inocente
mermuh! Cê acreditah?!
Eu não sabia que menino e nem o que tinha acontecido e ele não explicou , mas
respondi, segurando suas mãos entre as minhas e olhando nos seus olhos:
─ Sim!
Acredito!!!..
E ele se abraçou a mim e
chorou muito... Muito mesmo!
Quando o Prof. L.C veio devolver a turma, a Profª
S.M já estava lá e, observando o estado comovido de nós duas, perguntou se
Welzinho tinha se abrido comigo...
E a partir daí, em outros momentos ,consegui
através dele, qual era o caso de Welzinho: há dois anos, ele fora acusado de abusar sexualmente de um menino
de 1 ano e, alegava inocência, dizendo que tinha sido o tio...
O Tioh?!
Era u m cidadão dos maus bofes, uns dos mandões do trecho, cheio daquele poderzinho mequetrefe e perigoso das
primeiras milícias, que já começavam a se
formar nas comunidades carentes, da
cidade maravilhosa.
Finalmente, entendi o “tinhaaan”... E fuçando dali e daqui,
descobri que havia uma testemunha, que se negava a falar com medo... A gente
sabia de quê e de quem!
Então... A partir do desabafo de Welzinho, eu consegui
uma ligação com ele e, despertar sua vontade de aprender alguma coisa . Em parceria com os meus
coleguinhas desobedientes, consegui que ele começasse a ler e escrever pequenas frases e executar atividades
físicas e a até iniciar aprendizado de flauta!!!.
Mas... Tem sempre um mas,neh?!...
No final do ano, o nosso trio de
desobedientes foi mandado embora, pois não tínhamos o perfil ideal para
trabalhar naquele instituto!!!..
A gente
já sabia que isso podia mesmo acontecer... A gente tava incomodando muito e ,chamando
muita atenção pros esqueminhas dali!!! E , mas ainda, descobrimos que nossas carteiras de trabalho ,
que ficaram mais de 3 meses no contador, não foram assinadas.
Bão... Isto ia ser
uma outra luta!!! Mas... Jah sei que v.c
ficou se perguntando, neh?!... E o Welzinho?! Pois é...
Louve a Deus, querida, porque Ele nós dá
madeira e a gente, na nossa pequenez, só constrói uma pinguelinha... Mas... O
Todo Poderoso a transforma numa ponte ...
Um dia, encontrando com S.M ,na junta
trabalhista, ela me deu uma belíssima notícia... Ela conseguira convencer sua
irmã, que era uma daquelas advogadas quente nos dois ferventes - principalmente
quando se tratava de injustiça com os mansos e humildes – a pegar a causa dele.
E através de uma pastoral de menores, ela conseguira proteção pra ele e, pra a
testemunha, que finalmente falou o que sabia aí e enquadraram o Tinhon – ou melhor o botaram
pra ver o sol quadrado...
E Welzinho, o inocente mesmoh?!... Ele foi adotado pela família do Prof. L.C e, estava frequentando , além de uma escola em outro lado da cidade, uma escolinha de vôlei e, tocando flauta nas horas vagas...
Nunca mais o vi... E o pouco que sei é que se tornou homem de bem, que luta pelo bem coletivo. Nem sempre a gente pode rever os nossos sobrinhos de coração, principalmente
aqueles, que nos custam suor e lágrimas, mas nos rendem esperanças, neh?! Por essas e, outras experiências, é
que respondo a uma pergunta que me fez:
─ Valeu a
pena?
─ “Sempre vale a pena se a alma não é pequena”.*²...
E força, companheira! E vamos descansar e, aproveitar que hoje é sexta feirah!!!... E o céu estava lindo, neste lindo por-de-sol agostino e invernal, esperança de dias lindos, não importa o tempo e o clima!!!
Abs.
Tia Bebel!!
Izabel Cristina Dutra, produzido em JF/MG, entre os dias 11/06 e 28/08/2015.
* - HIPERDIA – centro de atendimento especializado a hipertensos, diabéticos e insuficiência renal; convênio da Fundação IMEPEN, UFJF, e Secretaria Estadual de Minas Gerais;Nomes e sobrenomes são fictícios, a fim de preservar a privacidade das famílias e pessoas;
*¹ - "Escritores da Liberdade" - filme norte-amricano , baseado na experiência real de uma professora, que vai lecionar numa escola, com problemas de disciplina e conflito racial, onde alunos negros estudam por bolsas através de convênios (dirigido por Richar de La Gravenese e estrea por Hilary Swank);
*² - Verso de Fernando Pessoa ( Fernando Antõnio Nogueira Pessoa - Lisboa, 1888 /1935) ,poeta português modernista.

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