quinta-feira, 11 de junho de 2015

Memórias dos sonhos e do pó de giz 7

O telefone tocou. E era uma amiga e colega: ─ Oi, Tiah Bebel...  Tô te ligando porque v.c ficou de registrar num dos seus blogs aquela história me contou, quando a gente tava tomando  cafezinho lá,  no Cine Palace... ─ Ah!!! Eh mesmuh! Então é pra jah!!!

                                                       Juiz de Fora, 11 de junho de 2015.
Querida Tiah Tetê*:
        
    Como vai? Tudo bem? Tah  a pé  ou tah de trem? Kkkkkkkkkkkkk!... Lembra dessa brincadeirinhah?
   Então...Realmente eu lhe  prometi  registrar essa história e vou registrá-la aqui nessas memórias dos sonhos, das lutas e, do pó de giz...
    Então... Era uma vez nos anos  80... Era o mês de agosto... Eu estava desempregada e, dando aulas particulares em casa. E depois de estar algum tempo afastada oficialmente do magistério,  numa tentativa de me dar bem e ganhar dinheiro em outras profissões,  assumi  novamente um cargo de professora regente, uma turma de 2ª série... (era assim que se chamava e dividia os níveis de ensino, naquela época)...
   Era  no I.S.S.I., uma escola particular da Zona Norte do RJ/Rj, que ficava  entre Ramos e Penha.  Ela mantinha um convênio com a Prefeitura, para receber um cota de alunos de uma casa de acolhimento (ou de correção ou de sei lá quê), um desses Centros de Bem(ou Mal)-Estar de Menores.
    Que legal,  neh?! Mas não demorou muito eu entender que o convênio era mais por causa das verbas extras recebidas pela prestação de serviço social, do que pelos acolhidos(as). Como naquele filme “Escritores da Liberdade”*¹... Lembra?!...
  Eram tempos difíceis, na Zona Norte da Cidade Maravilhosa. O processo de ocupação e/ou invasão  dos morros e das , comunidades próximas , já estava iniciando a sua fase mais violenta. As escolas do entorno  se enchiam de procedimentos e,  de regras às vezes absurdas,  para se proteger!
   Pois bem... Algumas turmas  tinha mais acolhidos(as) que as outras. E essa distribuição  não era  feita por faixa etária, não! Era por grau de“periculosidade”  e, pelo grau de experiência da professora  e, dos outros  alunos com os riscos sociais...
   Então... Assim que  assumi a turma, estranhei a estranha diferença  entre ela e  outras.  A maioria dos alunos, era negros e pardos pobres, oriundos das comunidades,  (que só eram  nominadas favelas, na surdina...) E muitos  dos acolhidos,  eram  separados e destinados à evasão ou repetência, porque afinal “ eles não  aprendiam nadah!”)   
   E aí, houve imediatamente  um remanejamento  geral, nas outras turmas e advinha para qual turma?  A minha!!
   E entre eles, estava  W........H........da Silva*: prenome difícil cheio de H,K,L e Ys...* ,s obrenome bem  fácil  e bem brasileiro... E vida difícil e, bem comum  a de muitas crianças brasileiras!!! 
  Não foi a necessidade do aluno(a) e/ou da sua turma ,que determinou esse remanejamento... Foi o meu histórico de professora e/ou de pessoa, passado “in off” , por algum colega mais próximo da diretora. Eu já tinha fama de tirar algo das "pedras"...
  Então... Ele era W........H........da Silva* (como estava na sua certidão)., e/ou Well  “o inocente” (como alguns profissionais se referiam a ele, no escondido da sala dos professores)...  
  Pois eh...Vou chamá-lo  simplesmente de   Welzinho*  mesmo, como os coleguinhas o chamavam.  
  Então...Welzinho * veio parar na minha turma e, com uma marca feia, estranha  na ficha de desempenho: menor infrator não alfabetizado e co alto grau de defasagem ,na capacidade de aprender!!! ... 
  E ele tinha 12 anos e o mundo nas costas! Era um menino negro, com uma pele linda de bebê bem cuidado e, um doce olhar negro cheio de dor, que não condiziam com sua marca. 
 O histórico da família era de lascar - era o que hoje os teóricos do desenvolvimento chamariam risco social de altíssima complexidade. E ele era infrequente e, quando estava presente ,era só de corpo! Quando se manifestava, estava zangado e/ou  destilando ironia... 
    Aí... Vc. pensa que realmente a ficha condizia com ele, neh?! Não!!! Pois, rapidamente passava ao estado de uma tristeza profunda...  
  Entre as regras absurdas, estava a de proibir os alunos de nos chamarem de tia/tio (foi nessa época que surgiu esse apelido pra  mestras/mestres). 
   Assim cheguei na escola, questionei a proibição, pois me parecia uma questão de acordo, de combinação entre nós e os alunos. E logo na primeira aula, desobedeci a regra da proibição e, combinei com meus alunos que podiam me chamar Professora, de Dona ou só de Izabel e, que Tia também valia, mas tudo  com respeito e, pra facilitar nossa comunicação. 
   Assim eles me nominavam do jeito que queriam,  mas sabiam que eu os chamaria pelo pronome e até pelo apelido, se quisessem  e, só  em caso de coincidência, eu citaria o sobrenome. A comunhão entre nós se estabeleceu rápido e , a turma se tornou expressivamente produtiva.
  Menos Welzinho*!... Ele, quando  queria me chamar, e usava um tal de “tinhaann”... “tinhaann” e ,muitas vezes em tom irônico. E eu não o atendia e/ou  parava em frente à sua carteira, dizia: 
    ─Wel...., eu a sou  Profª Izabel. Vc. pode me chamar de Tia mas direito, com respeito... 
   E aí eu adoçava a voz: 
   ─ E isso  se vc. quiser que eu seja mesmo sua Tia. 
   A reação dele variava: ou ele ficava com raiva e, não se dirigia mais a mim. Ou então ele me chamava aos gritos: 
    ─ Dona Izabeeeuuuh... 
  No começo de setembro, ele sumiu ... Mas... Oh  ... Esta história é curta mas tem muito detalhe... Te conto  o resto depois, porque agora vou ter que aviar a janta...                                            
                                                                   Tchau!!!
 Tiah Bebel!!!...

  
O telefone tocou. Era a Tia Tetê me cobrando... Oi, Tiah Bebel... Agosto tah terminando... E   tô te ligando porque v.c ficou de finalizar aquela história do Welzinho... Lembra... Ah!!! Eh mesmuh! Então é pra jah!!!

Juiz de Fora, 28 de agosto 2015.
Querida Tiah Tetê:
        
    Como vai? Tudo bem? Tah  a pé  ou tah de ....?  
    Bom ... Agosto tah terminando mesmo e setembro vem aí!!! A primavera   também vem aí...
   Então... Vamos falar de Welzinho... Aquele menino, que em suas 10 primaveras, soçobrava, em meio às tempestades da vida... 
  Pois eh... No começo de setembro, ele sumiu... E aos poucos profissionais, que fizeram questão de saber dele, a diretora respondia:         ─ É por causa do resultado da nova audiência sobre aquele caso dele... Cês sabem que ele sempre some depois, neh?!! 
  E quando eu quis saber detalhes e outras informações sobre o caso dele, uma das gestoras me tirou, respondendo: 
    ─ Tem certeza que quer conhecer os detalhes escabrosos do caso?!...Fica na sua!... 
  E daí  mesmo, que eu devesse e tentasse, eu não conseguia apurar qual era a infração...  
   E em outubro, na semana da criança, ele – o Welzinho* -  visitou a escola e ,no meio da festa, eu o persegui e me abri: 
     ─ Oi, Welzinho*... Tá querendo matar os colegas e a sua tia de saudades?!... 
   Ele não respondeu... Mas, no dia seguinte, ele estava lah!!! 
   Era um dia da semana em que eu ficava só uma hora com a turma. Depois, havia aula de educação física e música... 
   E por falar nisso, excelentes colegas de profissão: o Prof. L.C e, a Profª S.M* ! Nós formamos um trio, em defesa tanto dos alunos(as) da comunidade e principalmente dos acolhidos(as)... Concordávamos com algumas ações e regras, mas discordávamos de outras, com a mesma intensidade. 
   Entre as regras absurdas que nós abominávamos, havia uma que proibia que a professora regente ficasse a sós com qualquer aluno(a) e, se ele(a) se negasse a estar nas aulas especializadas, tinha que “ ficar de castigo” na sala da coordenadora... 
  Ah! E a gente não podia assistir aula especializada não!  
  Pois bem, nós  várias vezes em reunião pedagógica,  tentamos argumentar que poderia ser um bom momento pra gente reforço de aprendizagem e se aproximar mais e melhor dos colegas e,  dos(as) alunos(as), com problemas. Mas  éramos combatidos,  firmemente: ao invés disso, era melhor  ficar na sala dos professores, fingindo estar planejando, mas na verdade, fofocando e tomando café e mais café...   Acho que surgiu  aí minha dependência química de cafeína... 
    Então... Na  sua volta pessoal às aulas, naquele dia, Welzinho mais uma vez não quis ir à aula de educação física... E naquele dia, eu quebrei mais uma vez, com as regras absurdas... Pedi ao professor pra deixá-lo comigo, mas que não comunicasse à administração... Ele piscou o olho e disse: 
      ─ Stand by me... 
    Sozinhos, na sala de aula, Welzinho foi lá pro fundo e, eu me sentei na mesa e fiquei uns minutos,  observando ele futucando na fechadura da janela e da porta... Olhando para cima e para baixo... Fazendo piruetas inesperadas!! E então, rompi o silêncio e perguntei: 
     ─ O que vamos fazer, Welzinho?!... 
     ─ Nada! Não quero fazer nada... 
  Mas... De repente, veio em minha direção e gritouh  no meu ouvido: 
    ─ Tiah!!! Posso te contar um segredoooh?! 
    ─ Pode!.. – respondi cochichando... 
   E aí, ele segurou o meu rosto com as mãozinhas trêmulas e suadas e cochichou também: 
    ─ Eu não fiz aquilo  com aquele menino nãuuum! Foi o meu tinhon!!!  Eu sou inocente mermuh! Cê acreditah?! 
   Eu  não sabia que menino e nem o que tinha acontecido e ele não explicou , mas respondi, segurando suas mãos entre as minhas e olhando nos seus olhos:  
   ─ Sim! Acredito!!!..  
  E ele se abraçou a mim e chorou muito... Muito mesmo! 
  Quando o Prof. L.C veio devolver a turma, a Profª S.M já estava lá e, observando o estado comovido de nós duas, perguntou se Welzinho tinha se abrido comigo... 
  E a partir daí, em outros momentos ,consegui através dele, qual era o caso de Welzinho:  há dois anos,  ele fora acusado de abusar sexualmente de  um menino de 1 ano e,  alegava inocência, dizendo que tinha sido o tio...  
   O Tioh?!  Era u m cidadão dos maus bofes,  uns dos mandões do trecho,  cheio daquele poderzinho mequetrefe e perigoso das primeiras milícias, que já  começavam a se formar  nas comunidades carentes, da cidade maravilhosa. 
  Finalmente,  entendi o “tinhaaan”... E fuçando dali e daqui, descobri que havia uma testemunha, que se negava a falar com medo... A gente sabia de quê e de quem! 
  Então... A partir do desabafo de Welzinho, eu consegui uma ligação com ele e, despertar sua vontade de aprender  alguma coisa . Em parceria com os meus coleguinhas desobedientes, consegui que ele começasse a ler e  escrever pequenas frases e executar atividades físicas e a até iniciar aprendizado de flauta!!!. 
  Mas... Tem sempre um mas,neh?!... No final do ano, o  nosso trio de desobedientes foi mandado embora, pois não tínhamos o perfil ideal para trabalhar naquele instituto!!!..  
   A gente já sabia que isso podia  mesmo acontecer... A gente tava incomodando muito e ,chamando muita atenção pros esqueminhas dali!!! E , mas ainda, descobrimos que nossas carteiras de trabalho , que ficaram  mais de 3 meses no contador, não foram assinadas. 
   Bão... Isto ia ser uma outra luta!!! Mas... Jah sei que  v.c ficou se perguntando, neh?!... E o Welzinho?! Pois é...  
   Louve a Deus, querida, porque Ele nós dá madeira e a gente, na nossa pequenez, só constrói uma pinguelinha... Mas... O Todo Poderoso a transforma numa ponte ... 
  Um dia, encontrando com S.M ,na junta trabalhista, ela me deu uma belíssima notícia... Ela conseguira convencer sua irmã, que era uma daquelas advogadas quente nos dois ferventes - principalmente quando se tratava de injustiça com os mansos e humildes – a pegar a causa dele. E através de uma pastoral de menores, ela conseguira proteção pra ele e, pra a testemunha, que finalmente falou o que sabia aí  e enquadraram o Tinhon – ou melhor o botaram pra ver o sol quadrado... 
   E Welzinho, o inocente mesmoh?!...  Ele foi adotado  pela família do Prof. L.C e, estava frequentando , além de uma escola em outro lado da cidade,  uma escolinha de vôlei e, tocando flauta nas horas vagas... 
  Nunca mais o vi...  E o pouco que sei é que se tornou homem de bem, que luta pelo bem coletivo. Nem sempre a gente pode rever os nossos sobrinhos  de coração, principalmente aqueles, que nos custam suor e lágrimas, mas nos rendem esperanças, neh?!  Por essas e, outras experiências, é que respondo a uma  pergunta que me fez: 
    ─ Valeu a pena? 
    ─ “Sempre vale a pena se a alma não é pequena”.*²... 
   E força, companheira! E vamos descansar e, aproveitar que hoje é sexta feirah!!!...  E o céu estava lindo, neste lindo  por-de-sol  agostino e invernal, esperança de dias lindos, não importa o tempo e o clima!!!



                                                                      Abs.      
Tia Bebel!!

Izabel Cristina Dutra, produzido em JF/MG, entre os dias 11/06 e 28/08/2015. 

 * - HIPERDIA – centro de atendimento especializado a  hipertensos, diabéticos e insuficiência renal; convênio da Fundação IMEPEN, UFJF, e Secretaria Estadual de Minas Gerais;Nomes e sobrenomes são fictícios, a fim de preservar a privacidade das famílias e pessoas;
    *¹ - "Escritores da Liberdade" -  filme norte-amricano , baseado na experiência  real de uma professora, que vai lecionar numa escola, com problemas de disciplina e conflito racial, onde alunos negros estudam por  bolsas  através de convênios (dirigido por  Richar de La Gravenese  e estrea por Hilary Swank);
*² - Verso de Fernando Pessoa ( Fernando Antõnio Nogueira Pessoa  - Lisboa, 1888 /1935) ,poeta português modernista.                                                                                                        









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